segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

Você não está perdida

 (Ou feliz 2023!)

Em 2022 eu entrei numa paranóia louca de correr e correr, o mais rápido possível. Dar conta, resolver, mostrar serviço. E soei muitos alarmes de perigo para o meu corpo, que entrou em alerta. 

Corri e corri na trilha, rápido, subindo a montanha, como se um perigo invisivel estivesse correndo atras de mim. Então parei. Não escutei nada, respirei. Olhei para os lados, e me vi perdida. Que árvore são essas? Cadê a trilha? Perdi o caminho. Será?

Minha alma pede todos os dias que eu faça uma coisa de cada vez, que eu pare e preste atenção, pare de clicar tao rapido, pare de correr olhando pro chão. Pare, respire, olhe as estrelas. Exige profundidade. Também pede que eu não me prenda tanto a pensamentos sem sentido, ou exigências de quem não vale, ou expectativas sem troca. Pede leveza. 

Meu corpo pede que eu me mova mais. Alongar, curvar, correr, usar músculos. Respirar. Que eu tome conta dele, que o proteja, porque daqui um tempo tudo isso vai ser ainda mais importante. Que eu cubra distâncias maiores. Que ande em terras novas. Que veja novos céus. Que respire. 

Minha mente pede coragem para cometer erros, para ser julgada, para ser apontada na rua, para ser ridícula, para ser chata. Ser eu, minha autenticidade, nao querendo ser outros ou o que o outro quer. Viver de acordo com minhas medidas. Mais coragem, menos busca por perfeição. Aceitar fazer qualquer coisa mais ou menos, e descansar. Respirar. 

Respirar. 

Parei, respirei. Não, eu não estava perdida. Quando não há um caminho traçado, não tem como se perder. Você não segue uma rota traçada, sempre esteve em sua própria trilha. Você faz o caminho. Pode voltar, retraçar a rota, recomeçar a qualquer momento. Siga, mais vá mais devagar, vire quando quiser, pare para olhar o céu quando quiser. Admire o caminho. É só ele mesmo que existe. 


domingo, 5 de junho de 2022

Trinta e Seis

Acordei para completar 36 voltas no sol. E passei parte da manhã na companhia dele, o sol: raios entre as arvores, calor, luz, cheia de gratidão. Gratidão por ser feliz na maioria dos dias e ver tanto sentido na vida, mesmo que a vida que eu tenha não se pareça nada com o que talvez um dia eu tenha imaginado que seria aos 36 anos. Consigo ver exatamente como minha escolhas e os caminhos da vida me trouxeram até aqui, talvez longe de um ideal, mas exatamente quem eu deveria ser, e onde eu deveria estar. 

Há 14 anos quando minha mãe faleceu, os médicos disseram que meu irmão e eu teríamos que começar a fazer exames de prevenção de câncer de colón 10 anos antes da idade da minha mãe. Ela tinha 46, e 36 parecia tão longe! Mas a forma de contar os anos mudou ali, naquele ano. E eu nem sabia, mas a vida até ali e depois dali seriam duas vidas. Comecei uma nova vida há 14 anos. Me tornei outra pessoa. E talvez por isso eu me sinta tão mais jovem que meus 36 anos.  

Demorou um tempo pra eu perceber que na vida que começou ali eu precisava não só processar o luto daquela perda, mas também um trauma. Hoje eu sei que a morte da minha mãe foi um trauma. Perder a pessoa mais importante da vida é um luto bem singular, porque ele abala a estrutura que segura sua vida toda, você precisa reestruturar tudo, não somente coisas práticas, como quem paga contas, mas o que você sabe sobre vida, amor, cuidado, segurança, esperança, fé, identidade, família. E eu ainda estava no processo quando perdi também meu pai. E ali começou uma vida muito peculiar: ainda nos 20, eu já não tinha pai nem mãe vivos. Uma solidão existencial tão estranha. Isso me faz me sentir diferente da maioria das pessoas que conheço.

Mas eu tenho percebido que essa singularidade tenha sido uma desculpa para viver uma vida pequena, menor. Medos bobos, preocupações sem cabimento, uma vida muito investigada, muito nos detalhes, constante medo de errar. Tudo isso me faz sentir cansada com facilidade, me falta energia as vezes para ver amigos, me conectar com outros, fico muito presa em mim e nos detalhes de tudo. Mas eu sei: a vida é tão mais que meu mundo interior. 

Por um lado eu quero ser quem eu sou, uma pessoa sensível, que presta atenção em tudo, que admira coisas pequenas, que gosta de passar tempo analisando (passei a manha do meu aniversario escrevendo este texto de reflexão!) e tentando achar a melhor maneira possível de fazer qualquer coisa (e até transformei isso em trabalho). Mas eu preciso aprender e me dedicar a olhar com distância, ver o contexto do todo, entender o grande, as conexões. 

Ultimamente ando olhando muito pro céu, aprendendo coisas do universo. Tenho focado em viagens que me conectem com a natureza. Comecei também a fazer yoga. Práticas que me fazem sair de mim, da pessoa pequenininha, e ver o todo, o mundo em que estou inserida. Me ver pequena no universo me ajuda muito a tirar o foco de dentro. 

Aos 36 parece que viro uma esquina. Ainda me sinto tão menina. Mas a verdade é que não sou. Tenho dificuldade as vezes em me perdoar por tudo que não me tornei, mas sei que com o passar dos anos isso é muito inevitável porque cada escolha que a gente faz abre muitos caminhos na frente, e fecha muitos caminhos atrás. Quando eu me mudei de Cruzeiro pra fazer faculdade em São Paulo abri muitos caminhos, que no final me trouxeram onde estou. Mas fechei tantos outros. E se eu tivesse ficado em Cruzeiro? E se eu tivesse decido fazer faculdade em outra cidade? Onde eu estaria? Quem eu seria?

Alguns caminhos se abrem e fecham sem ser escolha também. Quando assisti de perto a morte da minha mãe, tantos se fecharam. O caminho em que ela seria avó, que meus filhos passariam férias com ela no interior. Coisas que parecem ser tão comuns se tornaram impossíveis. E tomei outros caminhos.

Fiz intercâmbio, o que me levou a mudar de país. O que me levou a passar um ano estudando em Harvard. Todos caminhos feitos por escolhas e pela vida. Ganhei tanto, e perdi também.

E o que eu tenho hoje? Viagens incríveis, poucos bons amigos, família que amo na distância. Moro longe e perco muito da convivência com meus tios, primos, e amigos, e agora com os filhos dos meus primos e amigos. Não tenho filhos por escolha, não tenho pais por destino. Caminhos que se fecharam. No passado.

No presente a gente tende a pensar que a vida vai ser sempre assim. A gente se esquece que estamos apenas num pedaço pequeno do caminho, que ainda existem tantas bifurcações a diante, que vida vai nos levar pra um lado ou outro, e daqui um ano ou 10 tudo pode ser tão diferente de agora. Com 36 anos minha mãe tinha 10 anos apenas pra viver e não sabia. O que será no futuro?

Cheguei aqui, nos 36, sou quem eu sou, deixei de ser um tanto de coisas. E tudo bem! Ainda serei um tanto no futuro. Estou cada dia mais em paz com os caminhos que a vida tem me levado e vai me levar. Me lembro todo dia que não há nenhuma necessidade de controle, de ter coisas materiais, de ser melhor que os outros, de subir degraus. Apenas ir em frente, cuidar da saúde e energia, seguir com minhas voltas ao sol, nesta galáxia, neste universo, até o dia que eu também vire energia solta por ai, como minha mãe, meu pai, e todos que vieram antes de mim. 

Ate lá, tem sido incrível aprender e me maravilhar com todas as estrelas, folhas, brisas, novas vidas, luto, fins e recomeços, árvores, desertos, cachorros, gerações, livros, pores do sol, nuvens, montanhas, pelúcias, estradas, luas, passarinhos, profundidade, leveza, raios de sol, estações, aprendizes e mestres. 






segunda-feira, 4 de abril de 2022

A Vida da Minha Mãe

Faz dias que estou presa neste dia: 4 de abril de 2022. Hoje minha mãe faria 60 anos. 

60. Idade que meu pai morreu. Idade tão longe dos 46, em que ela parou de contar. Meu primos que eram bebês quando ela morreu já são adolescentes. O tempo! Seus 46 anos, não tão longe dos meus 35 anos. Quão preenchidos são seus anos? O que poderia ter acontecido se ela estivesse aqui? Sou dessas de pensar muito em números, dos ciclos, do que se repete, de tudo que a gente vive enquanto a Terra segue dando suas voltas no Sol.

Há 60 anos minha mãe nasceu, na roça, sul de Minas Gerais, numa família gigante, dessas que tinham filhos em escadinha. Ela era a terceira, a filha mulher mais velha. A mãe, dona Benedita, teve 7 filhos, e só não teve mais porque morreu cedo, aos 30 e pouquinhos. Dona Benedita tinha uma doença psiquiátrica, acho que os médicos da época não souberam identificar. Nunca entendi ao certo do que morreu. Foi uma tragédia: uma mãe deixou 7 filhos desamparados, o mais novo ainda bebê. Minha mãe tinha uns 7 anos, e ganhou responsabilidades. Subia em tijolo pra cozinhar no fogo de lenha. Nenhum dos irmãos tiveram uma vida fácil. Foram cada um pra um lado, para serem cuidados por tias e avós. 

Minha mãe estudou só até a quarta série. Pré-adolescente, foi morar com uma senhora, que dava casa, mas também dava serviço. Ela limpava, cozinhava. Quanta resiliência! Crianças e jovens crescendo, sem muita proteção, sem lugar seguro, sem direito de sonhar com nada, sem uma casa estável, precisando trabalhar.

Minha mãe morou com essa senhora até os 17 anos, quando começou a namorar meu pai, e a senhora achava muita responsabilidade cuidar de "moça nessa idade de namoro". Minha mãe foi então morar com a avó, que já cuidava de outros irmãos mais novos. Ela nunca se sentiu muito incluída, ou cuidada. Nessa época um tio e o avô foram as pessoas que mais a acolheram. 

Minha mãe só teve uma casa quando se casou, com quase 23 anos. 

Aos 46 anos minha mãe teve um câncer, descoberto tão no final da vida. Uma semana antes de morrer, na última noite que não dormiu no hospital, deitei numa cama de solteiro com ela, e por horas e horas ela me recontou essa história. Sua história. Que tantas vezes antes ela tinha me contado. Que eu, criança com casa, com quintal, com escola, com pai e mãe dedicados, sempre achei tão triste. 

Dessa vez, sentindo a gravidade da doença, e o corpo dando sinais de que a vida estava por um fio, ela recontou a história, com uma conclusão tão triste mas tão ao mesmo tempo feliz: ela concluiu que só começou a ser feliz aos 23 anos, quando se casou com meu pai. Quando enfim teve sua casa, suas coisas, sua família. Perfeito não foi, claro. Mas fomos uma família feliz! 

Naquela semana, depois de ser feliz por muitos anos, minha mãe foi embora. E naquela semana, eu com meus quase 22 anos, comecei a fase da minha vida com mais dias tristes. Venho pensando muito na vida da minha mãe, como ela cresceu, como ela viveu, sua rotina, o que a fazia feliz. Uma vida tão diferente da que levo hoje. Penso muito também nos seus traumas, alguns que eu ainda carrego por ela. Penso na minha obrigação de ser feliz por todos os dias desses 60 anos em que minha mãe não pode ser feliz.  

Hoje agradeço por sua vida, por minha vida, por ter te feito feliz quando pude. Saudades até o fim dos meus dias!



sexta-feira, 27 de março de 2020

Lírios do Campo


Tá sentindo o vento virando, de frio ficando morno, ar parado, silêncio?
Tá vendo os passarinhos tomando rumo para longe, e as árvores se enraizando esperando o temporal?
Tá ouvindo o sino tocando a uma da manhã, acordando todos os que dormem, anunciando que é hora de arrumar as malas, se desfazer dos pesos extras, ajeitar bem apertado só o que vale a pena, e correr?
Tá sentindo o chão tremendo, uma leve mas constante sacudida, desfazendo os caminhos conhecidos, e criando trilhas que não estão nos mapas?
Tá vendo o trincado no relógio da igreja, que fez os minutos virarem segundos, e os ponteiros da hora pularem três dias?
É agora! Corra! Mas para onde? "Basta a cada dia o seu mal"?
Coragem!

O sol continua, mas as nuvens não se movem, a vila está vazia, e as promessas foram quebradas.
Todas as certezas viraram pena, que a gente joga lá do alto, leve, dançante, vai pra lá, e pra cá, quase enganando a gravidade, voa mais quanto maior a resistência.
Não haverá mais o comum, o normal, o conhecido.
Você vai perder o que mais teme: o controle.
Livre! Você, e todos os rumos da vida.
"Vos inquieteis"!
1% vai virar 100 mil, e do leste irá pro oeste, e ninguém mais vai cruzar oceanos.
A vida, que a outra geração nos serviu, acabada, lá no carnaval, varrida pras esquinas, pro lixo, pro bueiro.
A purpurina se espalhou no vento já morno, com as cinzas da quarta-feira.
E você nem percebeu, até que te faltou ar, faltaram camas, faltaram máscaras, faltou gente.

E agora, da tarde para a noite já não se sabe o que será da manhã, se gente ou sombra, se haverá o que comer, o que viver, o que vestir.
Tá vendo? Já cortaram os lírios do campo.
E as ruas são deserto, e as filas multidão: pro ar, pras esmolas, pro pão.
Mas você só pode escolher um 
(Quanto vivo sem pão? Quanto vivo sem ar?)

Tá ouvindo? Estão batendo nas portas, com força, fome, coragem, e espanto.
E vão bater por mais cinco noites, e dois dias.
E vamos entrar.
E vamos achar as casas vazias, com lustre, piano, e piscina.
O pão embolorado acumulando na dispensa, e nos quartos os corpos já sem ar há quinze dias.
Toda gente tem a mesma cor de ossos.

E em procissão vamos subir a montanha para enterrar todos os que não puderam se despedir.
E vamos pedir que nos conte como é viver sem futuro.
Mas quem sabia já se foi antes de nós.
Seremos sem história, sem mapa, sem medo.
E no dia seguinte acordamos sabendo que o mundo acabou, mas que ainda estamos aqui.
E vamos juntar todos os cacos, ruínas, gravetos para criar o mundo que sonhamos embaixo do abacateiro do quintal da nossa infância.

Um mundo em que somos fortes mas nem tanto.
Onde construímos belezas.
Onde pausamos para dores e não dores.
Onde não se compra tempo.
Onde todos são responsáveis por todas as árvores.
Onde ninguém tem mais do que precisa.
Onde não precisamos escolher entre ter pão ou ter ar.
Vamos então respirar, olhar em frente, e seguir.
Vejam os lírios dos campos.
Somos todos história.




domingo, 26 de janeiro de 2020

Viagem no Tempo


Estou eu aqui vivendo na próxima terça-feira.
Coisa sobrenatural.
Máquina do tempo.
Vivendo três dias no futuro.
Vivendo o projeto para entregar para um cliente exigente.
Vivendo todas as formas em que posso falhar.
Vivendo todos os 10 possíveis desfechos de uma reunião cheia de egos e perspectivas.
Todos os 10!
Em um fiquei feliz e orgulhosa de saber o que falar.
Falei “entendo sua perspectiva fulana, e sinto muito se meu email pareceu rude. Não foi minha intenção”.
Em outro fiquei triste.
Gritei “fulana, você tem que nos tratar com respeito!”
Estou aqui vivendo no futuro ao invés de viver hoje.
Hoje, um sábado chuvoso e frio, sem planos nenhum, em que posso ficar sozinha, em paz.
Fazendo o que eu quiser fazer, o que eu escolher.
Podia passar metade do dia lendo um livro incrível, fazendo yoga, assistindo meus programas favoritos.
Rindo, feliz, sem preocupação nenhuma, vivendo no hoje com toda sua paz.
Mas estou aqui, vivendo na próxima terça-feira.
Usando essa máquina do tempo
Com a desculpa de me preparar completamente para qualquer situação.
Controle! Que ilusão!
E o coração acelerado, nó no estômago.
Tudo preparado para correr do leão a qualquer momento.
Ao invés de estar no único momento que realmente existe:
Agora!

quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

A flock of birds


O - Coldplay
A flock of birds
Hovering above
Just a flock of birds
That's how you think of love
And I always
Look up to the sky
Pray before the dawn
'Cause they fly always
Sometimes they arrive
Sometimes they are gone
They fly on
A flock of birds
Hovering above
Into smoke I'm turned
And rise following them up
Still I always
Look up to the sky
Pray before the dawn
'Cause they fly away
One minute they arrive,
Next you know they're gone
They fly on
Fly on
So fly on
Ride through
Maybe one day I'll fly next to you
They fly on
Ride through
Maybe one day I come fly with you
Fly on
Fly on
Fly on

terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Aquele dia ja chegou

Eu estou aqui esperando o dia em que eu more numa casa com mais espaço. O dia em que não haja estresse no trabalho. O dia em que eu tenha um salário maior para que eu não me preocupe muito com coisas que o dinheiro da jeito. O dia em que as pessoas sejam diretas em comunicar o que precisam. O dia em que eu tenha confiança o suficiente pra não me preocupar com o que os outros pensem. O dia em que eu não saiba separar bem o que é do outro e o que é meu. O dia em que eu me sinta o suficiente e possa de verdade relaxar. O dia em que as pessoas aceitem quem eu sou por completo, sem cobrança, sem levar nada para o pessoal. Estou aqui esperando, esperando...voce também?

Esperando esse dia que nunca vai chegar, porque a gente sempre inventa coisas novas para esperar, e a gente só corre e corre, e a linha de chegada se afasta mais e mais. Até que um dia, sem que voce espere, acaba. Essa corrida só acaba quando tudo acaba mesmo. Acaba no dia que voce for embora.

Então antes disso, por favor, abandone essa corrida, pegue o trem, sente e aprecia o que vier até você. Os dias azuis e os nem tanto. Aprenda com todos, veja boniteza em todos. Veja o que voce tem hoje, e pare de correr. Acredite, voce não quer chegar mais rápido. Você precisa querer que tudo pare no tempo, e que todos os dias andem assim, bem devagar, em camera lenta. Ande mais devagar. O único dia que vale é hoje. E a única corrida que vale é ser um pouco melhor do que você foi ontem.



sábado, 14 de dezembro de 2019

Por que eu não paro de escrever sobre vocês


Hoje lavando a louça lembrei de uma cena que aconteceu algumas vezes na minha adolescência. Minha mãe gostava muito de bebês, e surgiu algum assunto relacionado a bebês, e de ela um dia ser avó. E ela disse algo assim: “Ai será que Deus vai me permitir essa benção?”. E eu sinceramente achava que aquela incerteza não fazia sentido nenhum. “Por que ela não seria avó?” Naquela época eu vivia num mundo em que não passava na minha cabeça a ideia de eu não ser mãe. E hoje eu aqui lavando a louça, na altura dos meus 33 anos, sem certeza se quero ou não ser mãe, chorei pensando em como independente do que acontecer na minha vida, Deus não permitiu. Chorei. Pensei em como tantas outras coisas não foram permitidas, e como minha mãe tinha mais noção da vida, e sabia que nada era dado.

Meu luto elaborado está aqui, faz parte de mim. Por muito tempo, ainda dentro do processo, vivi meio que sem entender como. Como consigo viver com essa ausência? Mas depois esse luto se tornou parte de mim. E hoje vejo tudo como um filme muito triste, que faz a gente chorar, e depois passa. Só que ao invés de um filme, são memórias. Que podem vir de uma hora pra outra. Eu me permito sentir isso. Me permito chorar. Me permito contar sobre minha mãe e meu pai sempre que há oportunidade, mesmo que tantas pessoas não estejam prontas pra falar de memórias. Ou talvez ainda seja avassalador pra elas, porque elas ainda não sabem que a gente sobrevive a esse tamanho de falta. Quando extravaza, eu venho aqui, e escrevo.

Pode passar o tempo que for. Mesmo com esse luto elaborado, eu continuo repetindo seus nomes, continuo escrevendo sobre minha mãe e meu pai, e sobre essa dor, que embora se chame dor, não seja feia nem aterrorizante, como um dia já foi. É uma dor bonita, que vem de coisas tão bonitas que existiram, que me fizeram eu, que deixaram tantas palavras, fotos, gostos, profundas marcas no meu inconsciente. E ao transformar essas pessoas em memória, essa dor deixou tanta coisa pra trás, coisas que nunca aconteceram, tudo vai para uma outra dimensão que invento, crio historias, possibilidades. Imagino.

Continuo sonhando com eles, continuando imaginando como seria ter 30 anos com pai e mãe. Como seria ter minha mãe para conversar comigo, ou meu pai pra me fazer rir de bobeira. Como seria discordar sendo tão adulta. Como seria mostrar o mundo pra eles, poder devolver o que eles me deram. Como seria meu pai caduquinho, minha mãe com rugas. Penso muito nas impossibilidades, de tudo que não foi permitido.

Eu continuo repetindo seus nomes, porque eu não existo sem vocês. Não fisicamente, mas em memória, vocês, fundadores, doadores da vida. Por isso que falo, escrevo, até o dia que eu for. Porque ao falar de vocês, vocês existem, e eu existo.

Eu sei o que vocês pensariam sobre tudo. Eu sei como vocês seriam em 2019. Mas vocês não foram. Em 2019 vocês são memórias. E eu sou uma pessoa inteira, metade pessoa, metade memória. E eu sempre vou falar de vocês.

*********

Escrevi uma parte desse texto depois de ouvir a um episodio chamado Irmãos, no podcast Mamilos, que foi a coisa mais linda. Num momento uma pessoa contou a historia de um rapaz que tinha perdido a irmã. E o psicólogo Alexandre Coimbra falou tao bonito sobre a morte. Transcrevo abaixo:

"Diante de uma perda desse tamanho, eu quero te dizer algumas coisas. Em primeiro lugar, que a morte é essa senhora, arteira, que lambe assim, de uma hora pra outra, os sonhos, e leva tudo. E a gente fica inerte mesmo. A gente cai num buraco, e eu quero te convidar para estar sem tempo certo pra encostar suas costas nesse buraco. Você vai perceber que ele é um útero, porque quando a gente é visitado pela morte a gente é redesenhado completamente. A morte é uma caneta que redesenha o contorno da nossa vida. E ali, na hora que você estiver com suas costas apoiadas neste vazio, que você tenha sempre oportunidade de falar da Mari, de visitar a Mari. Elaborar o luto não é esquecer, não é fazer com que a pessoa deixe de ser importante. Elaborar o luto é sempre dizer olá novamente, é sempre ter o direito dessa pessoa estar revistada na suas palavras, na suas falas, nas suas histórias, nas fotos, nos filmes, nas cenas divertidas, na lagrima, na gargalhada, no silencio. Essa importância que ela teve é um presente, que você recebeu, da possiblidade de você ter tido ate aqui uma convivência tão intensa e tão frutífera como irmã. Que a partir de agora ela possa continuar existindo e que o mundo sempre possa te ofertar pessoas que estejam dispostas a escutar suas historias com ela. Porque uma das maiores tragédias que pode acontecer com uma pessoa enlutada é ela ter que matar essa pessoa de novo ao não ter interlocutores com quem conversar sobre as historias dessa pessoa que foi. Então muito obrigado por trazer uma historia tão linda, que nos deixou todos emocionados. E lembra a gente que o tamanho da saudade é o tamanho da importância."


quarta-feira, 7 de agosto de 2019

Oceano

A ida dela foi daquelas que partem a vida em duas.
A que eu era, a que eu sou.
Duas.
Era uma menina gigante numa casa pequena.
Com paredes, com para sempres.
Bastava.
Agora uma mulher pequenininha num mundo todo.
Preciso de mapa, tradução.
Me perco.
A pior dor do mundo não é física.
Mas passa, assim como quase tudo.
O que fica?
O que aprendi:
Que sou pequena, num mundo de finitudes.
Onde as almas vão e vem.
Passam pelo rio, e deságuam no mar.
Todos nós, nos achando rio, quando somos oceano!
Eu gigante sabia menos que eu pequenininha.
Eu gigante achava que você me pertencia.
Mas sua ida foi daquelas que partem a vida em duas.
A que você era casa, e a que você é o mundo todo.
A montanha verdinha lá no vale.
A música do Freddie, do Ivan,
e aquela sobre a imensidão do universo em nós.
O gosto de salada de fruta e de coxinha.
Um jardim no Japão.
Uma cachoeira na Suíça.
O raio do sol que passa pelos galhos.
Meu insconsciente tão bagunçado.
Nossa vontade de ser orgulho.
Um olhar no espelho por meio segundo.
As risadas das minhas tias,
e os olhos grandes das crianças.
O pinhão que dá lá na sua serra.
O passarinho que cantou a manhã inteira,
porque é o primeiro dia da primavera
E a maioria dos dias ainda são felizes.
Você foi só deságuar.


(A ida dela foi há 11 anos, num 12 de agosto)


quarta-feira, 12 de junho de 2019

O último dos ascendentes


Desta árvore, quando eu nasci, apenas faltava Benedita. A vó Ditinha, que não conheci, cuja morte mudou a vida da minha mãe e seus irmãos. Era dela o luto que eu conhecia, que minha mãe tinha, de sentir falta do que ela nem sabia como era, de ter uma mãe. Meu vô Antonio, desde que me lembro, chorava e sonhava com a Ditinha, mesmo tendo casado de novo. Para mim a vó Ditinha sempre ocupou o papel de uma quase santa, que foi-se tão cedo, cuja ausência doia tanto nos filhos e marido, mesmo décadas e décadas depois.

Hoje destes ramos e galhinhos todos, só existe eu e meu irmāo. Nosso último ascendente, o vô Antonio, foi embora dias atrás. Foi la encontrar a Ditinha e sua filha, minha mãe. Foi, depois de criar os filhos com dificuldade, mas com sucesso. Foi amado, cuidado. Não teve estudo, mas contava um causo como ninguém. Tinha a risada mais alta e gostosa do mundo. A última vez que o vi, já debilitado, comentou que tinha visto minhas fotos, perguntou da minha vida, mostrava amor de uma maneira que é tão própria na familia. Missāo cumprida nesta vida!