sábado, 14 de dezembro de 2019

Por que eu não paro de escrever sobre vocês


Hoje lavando a louça lembrei de uma cena que aconteceu algumas vezes na minha adolescência. Minha mãe gostava muito de bebês, e surgiu algum assunto relacionado a bebês, e de ela um dia ser avó. E ela disse algo assim: “Ai será que Deus vai me permitir essa benção?”. E eu sinceramente achava que aquela incerteza não fazia sentido nenhum. “Por que ela não seria avó?” Naquela época eu vivia num mundo em que não passava na minha cabeça a ideia de eu não ser mãe. E hoje eu aqui lavando a louça, na altura dos meus 33 anos, sem certeza se quero ou não ser mãe, chorei pensando em como independente do que acontecer na minha vida, Deus não permitiu. Chorei. Pensei em como tantas outras coisas não foram permitidas, e como minha mãe tinha mais noção da vida, e sabia que nada era dado.

Meu luto elaborado está aqui, faz parte de mim. Por muito tempo, ainda dentro do processo, vivi meio que sem entender como. Como consigo viver com essa ausência? Mas depois esse luto se tornou parte de mim. E hoje vejo tudo como um filme muito triste, que faz a gente chorar, e depois passa. Só que ao invés de um filme, são memórias. Que podem vir de uma hora pra outra. Eu me permito sentir isso. Me permito chorar. Me permito contar sobre minha mãe e meu pai sempre que há oportunidade, mesmo que tantas pessoas não estejam prontas pra falar de memórias. Ou talvez ainda seja avassalador pra elas, porque elas ainda não sabem que a gente sobrevive a esse tamanho de falta. Quando extravaza, eu venho aqui, e escrevo.

Pode passar o tempo que for. Mesmo com esse luto elaborado, eu continuo repetindo seus nomes, continuo escrevendo sobre minha mãe e meu pai, e sobre essa dor, que embora se chame dor, não seja feia nem aterrorizante, como um dia já foi. É uma dor bonita, que vem de coisas tão bonitas que existiram, que me fizeram eu, que deixaram tantas palavras, fotos, gostos, profundas marcas no meu inconsciente. E ao transformar essas pessoas em memória, essa dor deixou tanta coisa pra trás, coisas que nunca aconteceram, tudo vai para uma outra dimensão que invento, crio historias, possibilidades. Imagino.

Continuo sonhando com eles, continuando imaginando como seria ter 30 anos com pai e mãe. Como seria ter minha mãe para conversar comigo, ou meu pai pra me fazer rir de bobeira. Como seria discordar sendo tão adulta. Como seria mostrar o mundo pra eles, poder devolver o que eles me deram. Como seria meu pai caduquinho, minha mãe com rugas. Penso muito nas impossibilidades, de tudo que não foi permitido.

Eu continuo repetindo seus nomes, porque eu não existo sem vocês. Não fisicamente, mas em memória, vocês, fundadores, doadores da vida. Por isso que falo, escrevo, até o dia que eu for. Porque ao falar de vocês, vocês existem, e eu existo.

Eu sei o que vocês pensariam sobre tudo. Eu sei como vocês seriam em 2019. Mas vocês não foram. Em 2019 vocês são memórias. E eu sou uma pessoa inteira, metade pessoa, metade memória. E eu sempre vou falar de vocês.

*********

Escrevi uma parte desse texto depois de ouvir a um episodio chamado Irmãos, no podcast Mamilos, que foi a coisa mais linda. Num momento uma pessoa contou a historia de um rapaz que tinha perdido a irmã. E o psicólogo Alexandre Coimbra falou tao bonito sobre a morte. Transcrevo abaixo:

"Diante de uma perda desse tamanho, eu quero te dizer algumas coisas. Em primeiro lugar, que a morte é essa senhora, arteira, que lambe assim, de uma hora pra outra, os sonhos, e leva tudo. E a gente fica inerte mesmo. A gente cai num buraco, e eu quero te convidar para estar sem tempo certo pra encostar suas costas nesse buraco. Você vai perceber que ele é um útero, porque quando a gente é visitado pela morte a gente é redesenhado completamente. A morte é uma caneta que redesenha o contorno da nossa vida. E ali, na hora que você estiver com suas costas apoiadas neste vazio, que você tenha sempre oportunidade de falar da Mari, de visitar a Mari. Elaborar o luto não é esquecer, não é fazer com que a pessoa deixe de ser importante. Elaborar o luto é sempre dizer olá novamente, é sempre ter o direito dessa pessoa estar revistada na suas palavras, na suas falas, nas suas histórias, nas fotos, nos filmes, nas cenas divertidas, na lagrima, na gargalhada, no silencio. Essa importância que ela teve é um presente, que você recebeu, da possiblidade de você ter tido ate aqui uma convivência tão intensa e tão frutífera como irmã. Que a partir de agora ela possa continuar existindo e que o mundo sempre possa te ofertar pessoas que estejam dispostas a escutar suas historias com ela. Porque uma das maiores tragédias que pode acontecer com uma pessoa enlutada é ela ter que matar essa pessoa de novo ao não ter interlocutores com quem conversar sobre as historias dessa pessoa que foi. Então muito obrigado por trazer uma historia tão linda, que nos deixou todos emocionados. E lembra a gente que o tamanho da saudade é o tamanho da importância."


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigada por seu comentário! Ele será logo publicado.