sábado, 27 de janeiro de 2018

A ordem certa dos dias


Já fui triste. De chorar e doer, como um buraco bem no meio do peito. De nem conseguir mais chorar, o que é a pior forma de tristeza: não tem como desembocar em rios; acumula, pesa, e afoga. Esqueci minha saúde, meu teto, minha comida na mesa. Não pensei em quem não dorme com medo de morrer sem perceber, ou de ladrão. Talvez seja a lua que mudou. A escuridão ás 5 da tarde. O desamparo de não ter ninho. Os seguidos finais de semana em silêncio. A constatação que no final estamos mesmo é sozinhos. O vento frio. O mau humor dos motoristas. As tantas pessoas formiguinhas, assim como eu.

Já fui feliz. De acordar sorrindo nos dias em que nada me esperava a não ser 8 horas sentada numa mesa. De falar sem parar, e sorrir para estranhos, e balançar a perna ouvindo rádio. Esqueci dos buracos, das distância. Fingi que sou preenchida, de tanto sentido, que transborda. Talvez seja a lua que mudou. Talvez seja a constatação que não importa o que eu sinta, contanto que eu dê nomes a eles. Os seguidos finais de semana com o silêncio, um dos meus amigos preferidos. E os poucos amigos que são minha rede. Talvez seja ouvir uma voz, ou descer do avião. Sentir o sol no rosto e fechar os olhos. A música que fala com você. Sentir minha humanidade em comum com quem nasceu do outro lado do planeta. Dar passagem na rua, e oferecer o lugar.

Um vai e vem. Talvez seja o começo da estação que eu gosto. E depois o fim. Talvez sejam as horas de sono, vai saber. Talvez sejam todas as fotos que tirei ano passado, e o que só fica em foto. Ou o que só importa agora, e nem vai mais existir daqui 50 anos. Talvez seja o café. Talvez seja o agora. Ou os dias em que há mais futuro que qualquer presente. Do passado nem ligo; minha memória deixa tudo escondido. Amém.

Todo mundo quer ser feliz. Mas a gente prega peças. A gente não se deixa ser feliz, porque felicidade é um negócio custoso. Carregar um sorrisão num mundo tão capenga parece um desatino. Como vou ser feliz se falta tanto? Tanto em mim, tanto no mundo, tanto no sentido das coisas. Como ser feliz se há tanto no que não me tornei? Tanto nas conversas que nunca vou ter. Tanto na forma como não deixo as pessoas verem o quanto me importo. Custa calar essas conversas internas. Custa ignorar que o mundo está falhando. Custa parar e estar agora.

Vamos lá, um dia por vez!

Só hoje me permito ser feliz ou triste, do jeito que venha.
Me permito ser o que eu sou
Mesmo que não seja o suficiente
Mesmo que não tenha feito nada para merecer nem a luz nem a escuridão.
Serei o que o dia me reserva.
Sem alterar a ordem das coisas, nem dos dias, nem dos sentidos.
E que haja sempre a certeza que quase tudo passa.
Os dias bons e os ruins.
E que ja aprendi a lição da única coisa que não passa.
Que o universo continue pulsando, na velocidade e tempo certos.

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"O correr da vida embrulha tudo,
a vida é assim: esquenta e esfria,
aperta e daí afrouxa,
sossega e depois desinquieta.
O que ela quer da gente é coragem.
O que Deus quer é ver a gente
aprendendo a ser capaz
de ficar alegre a mais,
no meio da alegria,
e inda mais alegre
ainda no meio da tristeza!

A vida inventa!
A gente principia as coisas,
no não saber por que,
e desde aí perde o poder de continuação
porque a vida é mutirão de todos,
por todos remexida e temperada.
O mais importante e bonito, do mundo, é isto:
que as pessoas não estão sempre iguais,
ainda não foram terminadas,
mas que elas vão sempre mudando.
Afinam ou desafinam. Verdade maior.
Viver é muito perigoso; e não é não.
Nem sei explicar estas coisas.
Um sentir é o do sentente, mas outro é do sentidor."

Guimarães Rosa - "Grande sertão Veredas"