sábado, 20 de setembro de 2008

Quem a ensinou a ser mãe?

Quase todas as noites sonho com a morte da minha mãe. Já sonhei muito com alguém vindo me contar que ela estava morta e eu dizendo que já sabia. Mas por duas vezes sonhei com ela viva. Viva, depois da morte. E nas duas vezes, embora a situação e o cenário fossem diferentes, o conteúdo foi o mesmo: contei para ela como foi seu velório. Fiquei pensando na razão disso, por que sonhar com isso duas vezes? Cheguei a conclusão que sonho com isso pois queria muito que minha mãe visse quantas pessoas estavam lá, e como poucos acreditavam no que tinha acontecido... Queria que ela se sentisse querida.
Minha mãe e seus irmãos tiveram uma história de vida muito triste. A mãe deles morreu muito jovem, 30 e poucos anos. Minha mãe tinha apenas 7 anos. Dos 7 aos 22 anos, a idade com que se casou, minha mãe não teve uma casa para chamar de sua. Na última semana de Maio, já na casa da minha tia em São Paulo, deitei ao lado da minha mãe na cama, com a luz apagada e ficamos conversando muito tempo, pela madrugada. Ela me falou que não havia se perguntando o porquê de sua doença, pois não era melhor que ninguém. Podia acontecer com qualquer um, por que não com ela? Mas ela estava tentando ver propósito naquilo. Se não existe um porquê, existe um para quê? Ela começou a me contar sua história, grande parte eu já sabia, mas ela acrescentou alguns fatos novos para mim.
Minha avó materna morreu muito jovem, deixando 7 filhos, todos ainda crianças. Logo meu avô se casou, com uma mulher que, embora hoje tenha um bom relacionamento com os enteados, (claro) não cuidou deles como uma mãe faria. Os irmãos mais novos de minha mãe, que eram praticamente bebês, foram morar com pessoas da família que os criaram quase como filhos. Os mais velhos ficaram e passaram por coisas bem ruins. Minha mãe, quase que por acaso, aos 11 anos, foi morar com uma família desconhecida, trabalhando para eles como empregada doméstica. Teve que sair da escola, na quarta série. Ela sempre me disse que chorou muito quando não pôde mais estudar. Por isso sempre incentivou muito que eu e meu irmão estudássemos. As pessoas da tal casa falavam que ela era da família, mas ela não participava de festas e comemorações, só ficava na cozinha trabalhando. Ela nunca ganhou salário, embora tenha se surpreendido quando saiu de lá com uma quantia em dinheiro que a mulher da casa guardou para ela durante os anos. Às vezes ela queria passar o final de semana na casa de seu pai ou de seu avô, mas todos já cuidavam de muita gente, já havia irmãos seus nesses lugares, e ela não era bem vinda...
Na madrugada em que conversamos, minha mãe me contou alguns acontecimentos pelos quais passou que mostram nitidamente como ela se sentiu sem família por um tempo, mostram como ela não tinha praticamente ninguém que se dedicasse a ela, como lhe faltou uma mãe! Coisas que só mãe faria, ela não teve...
Quando ela começou a namorar meu pai, teve que sair da casa da família em que morava, porque “era responsabilidade demais” ter uma “menina solteira em casa namorando”. Por intermédio de algumas pessoas, como seu avô e dois tios, ela passou um tempo na casa de seus avos, até casar.
Naquela madrugada ela me disse que começou a ser feliz depois que casou, quando teve uma casa para chamar de sua, para cuidar do seu jeito, quando começou a morar com alguém que a tratava bem. Ela poderia recomeçar, ter uma família.
Minha mãe estava tentando entender qual o sentido de agora, 23 anos depois, se ver com uma doença tão grave. Naquela madrugada eu fiquei muito triste, chorei e ela não percebeu porque a luz estava apagada. Que mundo injusto! Já não basta tudo que sofreu na vida, ainda tinha que passar por tudo que passou...Em Maio eu não sabia, mas hoje sei por quanto sofrimento e angústia ela ainda passaria antes de ir embora...
A mulher que cuidava da minha mãe morreu com câncer, logo depois que minha mãe se casou. Minha mãe foi um dia visitá-la enquanto ela estava doente, conversaram muito, a mulher pediu perdão por alguma vez ter deixado minha mãe triste, as duas choraram. Minha mãe me disse que naquela semana de Maio havia sonhado muito com ela, com essa mulher, pois se viu com o mesmo destino.
Quando minha mãe recontou sua história agradeci a Deus a chance que ele deu a mim, a meu irmão e a meu pai de tornarmos a história da minha mãe mais feliz. Minha família era feliz, mesmo quando tínhamos dificuldades, que Graças a Deus foram poucas. Sei que minha mãe trazia consigo muito ainda do que aconteceu em sua vida, mesmo que às vezes tentasse negar. O que mais a deixava triste na vida era perceber pequenas situações em que pudessem estar excluindo-a, mesmo hoje em dia. Lembro de várias vezes ela falar que tinha medo de envelhecer e ficar sozinha, de eu e meu irmão termos nossa vida e esquecermos dela. Nunca fizemos nada que demonstrasse que isso pudesse acontecer, mas sua história a fazia temer a solidão, mais que tudo.
Acho que já falei isso aqui...Todas as noites, desde meados de junho de 2008, depois de chegar do estágio ou da faculdade, eu dava banho na minha mãe. Tinha dias que eu estava muito cansada. E ela sempre estava me esperando chegar para ajudá-la. Mesmo cansada, eu ia ao banheiro com ela, às vezes me molhava inteira, às vezes meu braço doía de ficar segurando o chuveiro super potente da minha tia que massageava as costas da minha mãe por vários minutos...Mas eu pensava: “Quando alguém deu banho na minha mãe, mesmo quando ela era criança?” Nunca, tenho certeza! E eu ficava feliz em poder fazer isso com ela. Havia dias em que ela estava melhor e que com certeza ela conseguiria ir sozinha tomar banho, mas se sentia insegura. Hoje agradeço a Deus Ele ter me permitido ir todos os dias com ela. Todas as noites meu irmão fazia massagem nos pés da minha mãe, por vários minutos, e ela ficava com os olhos fechados e a boca em "formato de sorriso". No hospital, quando ficou internada em junho, ou quando fazia quimio ou tomava sangue, muitas vezes não era permitido que a acompanhássemos o tempo todo. Mas ela dava um jeito, conversava com uma enfermeira, fazia um charme (a gente brincava que ela seduzia os enfermeiros, pegando na mão, falando com voz de pena), e deixavam que a gente ficasse. Meu irmão, que teve férias em julho, ficou todos os dias ao lado da minha mãe. Ainda bem que pudemos fazer isso. Como é triste ver pessoas no hospital que não têm acompanhantes, mesmo quando é permitido! É triste ver mães, que se dedicaram tanto a seus filhos não terem, no momento em que mais precisavam, carinho e amor das pessoas que elas mais amavam...Vi muitas situações assim no hospital nessas semanas!

Eu queria que hoje minha mãe soubesse como ela está fazendo falta para tantas pessoas! Claro que ela sabia que essas pessoas a amavam, mas eu queria que ela tivesse uma certeza absoluta, uma certeza sem furos, sem pingo de dúvida. Por isso sonho com eu contando a ela do velório. É estranho falar, por mais triste que seja a situação: o velório foi bonito. Estava cheio! Foi na igreja, como ela gostaria, tenho certeza. Muitas pessoas hoje me falam como minha mãe era boa, como ela fazia diferença. Isso me deixa bem, me faz pensar muito no sentido de estarmos aqui, de vivermos, pensar no que realmente deixamos na Terra, o que vale a pena acumular. Minha mãe se foi, muito cedo, de maneira inesperada, mas deixou tanto, que vai ficar aqui dentro de nós, seus filhos, amigos, irmãos, tios, por muito e muito tempo.....
Pergunto-me como uma pessoa que não teve referência nenhuma de mãe conseguiu ser uma mãe tão única, tão sábia. Dedicou-se demais a nós. Se existe missão na Terra, a dela foi nos criar. Foi só os dois filhos saírem de casa, que ela se foi.

3 comentários:

  1. esse final me deu um arrepio até....
    sabe eu disse pro meu irmão... q eu naum chamava sua mãe de dinalva... sempre q eu me referia a ela eu dizia: ... mãe da aline, mãe do tiago...
    sua mãe teve a missão mais doce e cumpriu de forma única mesmo....

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  2. Lindinha...
    Pedacinhos de vida, que transformam outras vidas...

    Sua mãe deixou dois filhos maravilhosos, e uma família que tive o orgulho de conhecer...Obrigada por tudo!

    Te amo amiga...
    bjs ka

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  3. Eu queria que ela soubesse o quanto eu gostava dela " eu queria que ela tivesse uma certeza absoluta, uma certeza sem furos, sem pingo de dúvida"

    Quando fiquei aquelas duas semanas lá em são paulo ao lado dela, ouvi muitas coisas boas dela.
    Eu tinha uma certeza tão grande que ela iria sair dessa (espelhando tudo no que o meu pai tinha sofrido).
    Agora a vontade de dizer o quanto eu gostava dela ficou preso dentro de mim...
    Ela me chamava de "Egidinho" e vc não tinha idéia do quanto aquilo me fazia bem!
    No dia que eu iria embora pra Cruzeiro ela tava dormindo, dei um beijo em sua testa e essa foi a ultima vez que tive a oportunidade de dizer...

    Isso vem me torturando! E a saudade, nem se fala!!!!

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