terça-feira, 11 de agosto de 2009

Há um ano...

(Escrevi muito, de novo.)

Há um ano eu vivia os piores dias da minha vida. Hoje eu sinto que faz tempo, embora quando me lembro desses dias sinto quase a mesma angústia. Desde então já entrei em hospitais milhares de vezes, mas sempre me sinto com a respiração diferente, com uma tensão em ver médicos ou enfermeiros. Esses dias percebi que cada vez mais penso nesses dias como um filme, que não parece ter sido comigo, com minha família, com minha mãe.

No dia 5 de agosto de 2008, eu deitei para dormir abraçando minha mãe, e cheguei a cochilar com as mãos na barriga dela. Lembro-me muito bem do que eu senti. Naquele dia ela tinha tido uma hemorragia que nunca havia tido, e ela soube, e eu e meu pai também, que não era bom sinal. Já fazia alguns dias que ela estava mais fraca, que pouco andava pela casa da minha tia em São Paulo, só queria ficar deitada. Ela tinha piorado, mas acho que não quisemos perceber. Naquela noite eu chorei com ela dentro do banheiro, quando ela me disse que não queria morrer, que queria ver eu e meu irmão mais velhos. Era uma terça-feira, e ela morreu uma semana depois.

No dia 6 ela tinha quimioterapia, e eu, ela e meu pai saímos da casa da minha tia perto da hora do almoço. Lembro que ela realmente estava muito debilitada. O caminho todo, entre a casa da minha tia e o Instituto do Câncer foi difícil, porque qualquer movimento maior do carro ela reclamava de dor, pedia para meu pai ir bem devagar. Foi a única vez que eu fui com ela no banco de trás, e ela foi deitada no meu colo. Pelo caminho inteiro fiquei com a mão no cabelo dela, e o tempo todo ela pedia que a janela estivesse aberta, para ela respirar melhor.


Assim que chegamos ao hospital, já percebi que tudo estava diferente. Ela nem foi para a sala da quimio. Era nítido que ela não estava bem. Lembro-me muito bem daquela tarde. Ela estava em uma maca. Ficamos em uma sala onde um enfermeiro, muito simpático, aferiu sua pressão, mediu temperatura, essas coisas todas. Pela primeira vez também viram o nível de saturação no sangue, acho que assim que falam, para ver como estava a respiração. Tudo estava abaixo do normal. Foi quando chamaram uma médica que disse que não seria possível fazer quimio naquele dia, pois minha mãe não estava bem. Ficamos um tempo ainda na sala esperando o resultado de um exame de sangue. Lembro que o enfermeiro me contou que havia se mudado para São Paulo naquele ano, que deixou sua família no interior. Contou-me que gostava muito de trabalhar ali. Não lembro se o nome dele era Antonio, ou era José, porque minha mãe o chamou dos dois nomes, mas lembro que apenas um era correto. Ela até se explicou: “Sabe o que é? Meu pai se chama José Antonio, ai confundi os dois nomes”. Até rimos. Mas ela estava bem sonolenta. Fiquei de pé perto da janela, e olhando para muitos prédios comecei a chorar. Eu estava percebendo que as coisas estavam ficando piores mesmo. O enfermeiro quando percebeu, me deu um papel, para eu limpar meu rosto antes da minha mãe perceber que eu havia chorado.

Meu irmão chegou na sala um pouco depois que chegamos, vindo da faculdade. Ele também se assustou com o modo como minha mãe estava, e com terem impedido ela de fazer quimio. Estávamos percebendo que as coisas não estavam bem.

A médica chegou depois, e pediu que descêssemos até o primeiro andar, onde funcionava o pronto socorro. Na época, o hospital ainda não tinha internação, e as pessoas que precisavam ficar mais tempo ficavam no pronto socorro. Pronto socorro é um nome ‘feio”, parece um lugar de emergência e muitos pacientes, mas neste hospital não era. Era um lugar bem tranqüilo, com poucas salas, poucos pacientes dormiam lá, e os enfermeiros eram excelentes.

A médica também pediu alguns exames, e alguns procedimentos específicos que aliviariam o desconforto abdominal que minha mãe estava sentindo.

Minha mãe fez uma nova tomografia neste dia. Lembro que quando vieram buscá-la para o exame, ela começou a fazer cara de choro, pedindo que a enfermeira me deixasse ir junto. A enfermeira ainda brincou que deixaria se fosse meu irmão, porque ele era bonito. Minha mãe riu, e lembro que ela me deu um sorriso, bem calmo, de paz, sem abrir a boca, quando viu que eu iria com ela. Quase todas as vezes que sonho com ela, ela me dá esse mesmo sorriso.

Na sala da tomografia ela vomitou. Nunca isso tinha acontecido. E eu fiquei apavorada quando me chamaram porque ela tinha vomitado. Todos os sintomas que ela nunca teve, estava tendo agora.

Depois, na sala do pronto atendimento ela vomitou de novo, depois de tomar um suco.

Não me lembro se foi naquele dia, ou no dia seguinte, que a médica voltou para conversar comigo. Disse-me que os exames mostraram uma piora no quadro geral da minha mãe, o que significava que não seria mais possível fazer quimioterapia, o corpo não estava agüentando. Pela primeira vez eu ouvi um médico falar em cuidados paliativos, que é quando não há mais tratamento, e sim um cuidado em diminuir a dor e levar conforto ao paciente. Ela não disse, mas eu entendi que minha mãe estava morrendo. A sensação que senti ali foi horrível, não tem como explicar. Foi a mesma que eu senti quando o médico na minha cidade me falou dos nódulos no fígado, em Maio. Mas foi no dia 6 de agosto que eu perdi a esperança.

Logo depois que falei com a médica, sai de dentro do pronto atendimento, passei pelo meu pai e meu irmão na recepção e fui para o banheiro. Eu senti um desespero tão grande, que não consegui ficar de pé. Meu corpo inteiro formigava, e eu me sentei no chão. Chorei muito. Meu pai, meu irmão e uma senhora vieram atrás de mim, mas eu não conseguia falar. Era muito difícil ter que enfrentar a realidade. Lembro que a primeira coisa que eu consegui dizer foi: “Eu não quero perder minha mãe”.

Depois de sair de lá, conversei ainda com meu pai e meu irmão. Ainda consegui pensar que as coisas poderiam dar uma volta, que minha mãe poderia se alimentar, tomar bastante água, os exames poderiam melhorar, qualquer coisa. Mesmo que não houvesse mais tratamento, nós três ainda conversamos em tentar convencer minha mãe a ir para Cruzeiro, ficar em casa, já que hospitais já não fariam muita coisa. Eu e meu irmão conversamos de até trancar um semestre na faculdade e ficar com ela em Cruzeiro, já que não teríamos muito tempo.Na verdade tinhamos menos tempo do que pensamos.

Quando vi minha mãe de novo, depois de falar com a médica, foi difícil olhar para ela. Ela sempre me olhava assustada quando eu voltava de conversa com médicos, tentava ver se eu tinha chorado. Lembro que naquela noite eu e meu irmão revezamos em ficar com ela, e nós dois chegamos a falar que os médicos disseram que os exames tinham dado uma piorada, e que por isso ela tinha que comer bem e beber bastante água. Lembro também que por um dia inteiro conseguimos: ela bebeu bastante água, comeu o máximo que conseguiu. Falamos se ela não gostaria de ir para Cruzeiro, de ver a família. Lembro que comentei que seria legal se pudéssemos fazer uma reunião com todos os irmãos dela, em casa, como ela sempre quis. Até lembro que ela me disse: “Credo Aline! Até parece que estou morrendo!”. Quando lembro disso penso que ela confiou até o fim. Confiou mais que eu.

Depois desse dia tivemos momentos muito difíceis. Cada troca de médico era alguém que vinha nos dar más notícias. Chegou um momento que eu não queria mais falar com médico, eles sempre falavam as mesmas coisas. Todos vinham com o mesmo cuidado, achando que seriam os primeiros a falar sobre minha mãe estar piorando, então assim que eles vinham eu já falava que estava por dentro de tudo.

Eu já escrevi aqui sobre esses dias. Foram seis noites no hospital, e eu, meu pai e meu irmão revezávamos; Dormíamos na recepção com a TV ligada passando jogos das olimpíadas na China, chegamos a dormir no carro. No começo ficávamos bastante no quarto, pois minha mãe sempre acordava. Ainda conversávamos com ela. Mas com o tempo ela só dormia.

Dia 10 foi dia dos pais, e algumas pessoas foram visitar minha mãe. Para todas ela dizia que queria dormir, só queria dormir. O corpo dela estava parando, aos poucos.

Lembro que no dia 11, uma segunda-feira de manhã um médico veio nos falar que ela seria transferida para o pronto socorro do HC, para avaliarem uma possível cirurgia. O médico tinha um pesar nos olhos muito grande. Eu pedi a ele se ele não poderia diminuir os remédios que dava a minha mãe, para que nós pudéssemos conversar com ela. A gente já não conseguia. Eu sabia que tinha pouco tempo.

Naquele dia ela saiu de ambulância desse hospital, e foi muito triste aquela cena. Meu irmão, meu pai, desespero de todos. Ela já estava com a consciência bem alterada, teve que sair com balão de oxigênio. Quando ela estava entrando na ambulância um enfermeiro muito gentil que a acompanhou na primeira quimio nos viu, e ele não deve ter acreditado que estava vendo minha mãe daquele jeito.

Fui com ela na ambulância. Já contei aqui o que aconteceu depois disso. Ela morreu algumas horas depois, no dia seguinte. O pior dia da minha vida foi o dia 11 de agosto, não foi o dia 12, não foi o dia que ela morreu.

Dia 11 somente eu fiquei no pronto socorro do HC. Meu pai e meu irmão só entraram mais tarde, quando um médico permitiu, depois que ela piorou bastante. Antes deles entrarem minha mãe ficou em uma sala de emergência, e lembro de ver ela sentindo dor. E eu não podia fazer nada. Aquele lugar se tornou o pior lugar do mundo para mim. Já falei isso aqui também. Pessoas grossas, que se acostumaram a ver pessoas doentes, com dor, e não se sensibilizam. Claro, não são todos, mas é a maioria.

Eu fiquei ali sozinha, vendo minha mãe sofrer, sem poder ficar bem do lado dela, e sabia que ela estava morrendo. Na verdade acho uma benção ela só ter sentido dor assim nesse dia, no ultimo dia. Ela sempre teve medo disso. Câncer para ela tinha uma ligação muito forte com dor, e ela tinha pãnico de dor, e foi poupada de passar mais tempo por isso. Foi nesse dia que vi que aquilo realmente tinha que acabar, não queria aquela vida para minha mãe, que nunca, por um segundo, merecia estar ali.

Eu já contei aqui. Meu irmão entrou depois. Ficamos um pouco mais com ela, já sem dor, já medicada. Ela estava com falta de ar. Nós a abraçamos. Ela falava bem enrolado, quando acordava. Era visível que ela estava tendo delírios, vendo cenas da infância, quando falou nomes de irmãos. Mas em um momento ela olhou para meu irmão e disse: “Ah Tiaguinho...” . Não era dor. Era pesar. Ela não queria nos ver naquela situação, ela não queria ir embora.

Eu nem devia estar escrevendo isso aqui. Acho tudo muito triste, pesado. Mas me ajuda muito escrever. Faz um ano, mas esses últimos dias da minha mãe no hospital ficam martelando na minha cabeça quando fico sozinha. Sei que nunca vou esquecer, mas escrever ajuda a tirar um pouco a angustia. É muito ruim. Eu penso mil coisas, coisas que eu devia ter feito, coisas que eu nem sei se minha mãe percebeu que estava acontecendo, se ela sentiu mais dor do que eu percebi. Já sonhei muitas vezes com ela me contando o que sentiu nesses dias, porque isso me angustia muito, mesmo eu sabendo que ela se foi bem tranquilamente. Tudo foi diminuindo aos poucos, até que parou. E quando parou, e o médico veio na direção minha e do meu pai, eu me senti aliviada e vazia. Como se tudo em volta sumisse, e um vento uivasse dentro de mim. Eu senti uma tristeza muito calma. O médico deve ter estranhado muito a calma minha e do meu pai. Até hoje eu lembro e também estranho. Era a pior noticia de todas, era o meu maior medo acontecendo, a vida da minha família iria mudar, nada seria como antes, todos os momentos felizes da minha vida dali em diante teriam um buraco imenso, mas na verdade eu sabia que as coisas podiam ser piores. A morte é muito dura, é uma grande ausência, traz um vazio que nunca se completa, mas também é um descanso.

4 comentários:

  1. Lindinha...nem sei o que escrever! Foi td mto difícil...já faz um ano, parece mto tempo e, ao mesmo tempo, parece que foi ontem! Nessa semana, penso na sua mãe constantemente. Que saudade que ela deixou.

    Ler o que vc escreve sobre ela traz um alívio estranho pra mim tbm!

    Bom...sem palavras agora! Só queria te dar um abraço!

    Sempre estarei ao seu lado!

    Bjos!

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  2. qdo vc conta eu tento imaginar as cenas, mas claro não cosigo. Tbm sinto saudades da sua mãe, e nao entendo mto bem como isso pode acontecer, mas gosto de saber q vc está forte e bem....
    bjos
    Amanda

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  3. Lindinha...

    esses dias pensei muito na sua mãe e resolvi passar por aqui...

    amo vc amiga...bjs ka

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  4. Olá!! Não te conheço, mas posso compartilhar com vc muitas coisas pelas quais eu vivi tbm. Minha mãe se foi, tenho apenas 24 anos, e a perdi para o cancer. Os ultimos dias dela foram terríveis, aquela sensação de que ela poderia ir a qualquer momento. Gosto de ler seus posts, pq eh incrível como alguem possa ter passado por momentos tão semlehantes. É bom poder saber que não sou a unica que passou por isso, que não é uma "injustiça" comigo. Penso que Deus tem um propósito para cada um, e não consigo acreditar que a vida seja só isso aqui. Beijos!!

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