sábado, 1 de novembro de 2008

Sobre a morte

No dia 11 de agosto, um dia antes de minha mão falecer, ela foi transferida do Instituto de Câncer para o Pronto Socorro do Hospital das Clínicas, onde seria avaliada a possibilidade de uma cirurgia de emergência. Entrei no Pronto Socorro com ela aquele dia com muitas lembranças daquele lugar. Foi pelo pronto socorro que ela entrou no HC, no dia 27 de Maio, la no comecinho, quando ela ainda sentia poucos sinais da doença. Ali ela ficou internada por 12 dias, em meados de junho, para tratar a trombose. Ali foi onde ela respirou pela última vez. Ainda vou um dia escrever melhor sobre esse lugar, que para mim resume bem o que é um pesadelo. O que acontece se você coloca muitos pacientes em macas, precisando de atendimento imediado, em um corredor largo e feio, por onde passam pessoas baleadas e vítimas de acidentes graves, com muitos enfermeiros e médicos residentes já sem paciência para atender todo mundo? Um caos.
Mas não vou falar sobre isso hoje. Quero contar uma cena desse dia 11 de agosto. Entrei no pronto socorro ajudando o enfermeiro a empurrar a maca onde minha minha mãe estava. Ela respirava com a ajuda de uma balão de oxigênio, e não estava 100% consciente. A enfermeira que a recebeu a levou para uma das salas de emergência. Esta sala podia receber a qualquer momentos pessoas que precisavam ser atendidas com emergência e por isso eu não podia ficar la dentro o tempo todo. Fiquei na porta, olhando angustiada para minha mãe, que estava com os olhos fechados e respirando com dificuldade. Ao meu lado, uma senhora com uns 60 anos, que vou chamar aqui de Joana, também olhava para a sala com preocupação. Quando as enfermeiras fechavam a porta, nós duas tentávamos enxergar pela fresta. Começamos a conversar. Dona Joana me contou que lá dentro, do lado da minha mãe, estava sua mãe, uma senhorinha de 85 anos, que tinha leucemia. Joana me contou que sua mãe tinha acordado cansada demais naquela manhã, e ela achou melhor levá-la para o hospital. Quando consegui olhar quem era a senhorinha, me supreendi ao avistar uma senhora sentada na maca, se movimentando bem. Ela estava segurando uma máscara de oxigênio. Era uma senhorinha com todos os cabelos brancos. Não consegui não compará-la com minha mãe. Minha mãe, 40 anos mais jovem que ela, tão bonita, com tanto tempo pela frente, estava ali, deitada, sem saber o que estava fazendo ali, não conseguia mais conversar com a gente, os médicos já tinham nos dito que ela tinha pouco tempo. Ela estava ali com sua vida indo embora tão cedo, e aquela senhora com mais de 80 anos, vitima também da mesma doença, estava bem, sentada, conversando. Joana estava muito preocupada com sua mãe, mas eu, de maneira egoísta, pensei que eu tinha mais razões para ficar triste, para me desesperar...
Naquela bagunça de Pronto Socorro, minha mãe acabou indo para outra sala, e a mãe de Joana foi para outra também. Mais tarde meu irmão e meu pai receberam permissão para entrar no Pronto Socorro, pelo agravamento do estado da minha mãe. Por volta de 23 horas, meu pai estava no telefone, eu e meu irmão estávamos sentados em frente a sala onde nossa mãe estava. De repente, levamos um susto com alguns médicos empurrando com pressa uma maca com uma senhora, e Joana estava atrás, chorando, gritando, desesperada. Os médicos entraram com sua mãe na sala, e Joana ficou descontrolada do lado de fora. Eu, meu irmão e mais algumas pessoas que ali estavam corremos para ajudá-la. Pegamos uma cadeira, meu irmão pegou água. Joana só falava: "Não posso perder minha mãezinha! Não acredito que vou perder minha mãe". Ela falava isso sem parar, respirava forte, falava perdendo o ar. Alguém nos disse que sua mãe teve uma parada cardíaca de repente, e foi levada para a sala para reanimação. Uma médica foi falar com Joana, dizendo que os médicos estavam cuidando de sua mãe. Eu e meu irmão tentamos conversar com Joana, acalmá-la, mas ela estava tão descontrolada que não conseguia nos ouvir. Eu e meu irmão nos olhávamos, não dissemos nada sobre nosso mãe, mas pensamos na ironia daquilo tudo. Estávamos consolando uma senhora de 60 anos, que perdia sua mãe de 85, e o médico já tinha avisado que nossa mãe estava indo embora...
Eu com 22 anos, meu irmão com 19. Minha mãe com 46, podendo ainda viver o dobro do que até ali tinha vivido. Como ainda tínhamos planos! Como planejamos coisas achando que tínhamos controle sobre o futuro. Meu pai, com 54 anos, planejou se aposentar, ter mais tempo para viajar com ela, curtir os netos com ela. Eu sei que meu pai nunca pensou na possibilidade de ver minha mãe morrer. Eu sei que ele achava que ia antes dela.
Eu e meu irmão estávamos ali acalmando Joana, desesperada, não acreditando que tinha chegado a hora do que ela com certeza temeu por toda sua vida. Alguns minutos depois uma médica deu a noticia para Joana: sua mÃe teve uma parada cardiaca e não resistiu.
Essa história me fez pensar em duas coisas.
Eu e meu irmão conversamos sobre isso naquele dia. Concluimos que sempre é cedo para se perder uma mãe. Sempre a gente quer que dure mais, sempre a gente perde muito, muito, muito. Minha mãe se foi muito nova, sua ida vai deixar um vazio em todos os momentos das nossas vidas que eram para ser felizes. Joana queria que sua mãe visse seu bisneto nascer, queria que a mãe estivesse no casamento de sua filha mais nova...Sempre é cedo...Sempre a perda é infinitamente gigante...
Pensei também em como nos enganamos com a hora da morte. Quando vi Joana tive certeza que ela estava desesperada, mas que eu perderia minha mãe antes dela. Não foi assim.

Quando descobrimos a doença, minha mãe passou a temer muito a morte. Durante os 81 dias, ela não conseguia dormir, ficava as vezes olhando para o nada, só pensando. Sei que ela pensava na morte, pensava em como ela parecia mais próxima desse momento, em como sua vida estava sendo ceifada, sem dó, sem aviso, sem que pudéssemos fazer nada. Eu sabia que a doença dela era grave, mas eu não pensava que fosse ser tão rápido. Quando a médica me disse que minha mãe tinha poucos dias levei um susto porque não sabia que pudesse ser assim. Achei que ainda estariamos juntos no natal, pensei que ela ainda iria para Cruzeiro, que veria sua casa ainda...
Temos uma certeza na vida, a única certeza, todos vamos morrer. É pessimismo dizer isso, mas estamos todos morrendo, a cada dia um dia a menos...Ter uma doença grave vai diminuir esses dias, mas ainda é vida...
Em abril fui com minha mãe visitar uma pessoa com uma doença grave, para quem os médicos deram pouco tempo. A familia não contou para a pessoa sobre a doença. Chamei meu namorado para um canto e disse a ele: "Estranho pensar que é a ultima vez que minha mÃe está vendo essa pessoa". Hoje quase me arrepio em pensar que foi a última vez que elas se viram, mas quem se despediu da vida foi minha mãe, e a pessoa está viva e bem, e ainda não sabe da doença. Me arrepio não em pensar que esta pessoa está viva. Acredito na vida, e não acredito em previsões médicas, de jeito nenhum. Espero que essa pessoa supreenda mais e mais. Me arrepio em pensar em como naquele momento minha mãe estava bem, em como sua morte não era nem um pouco possível.

Sempre gostei de ter agenda, de escrever todos os compromissos, todas as datas de trabalhos, de provas, escrever meus gastos...Só em outubro consegui voltar a fazer isso. Em agosto e setembro eu olhava minha agenda e me dava uma sensação muito ruim. Que controle nós temos? Quem sou eu para planejar o futuro, se ele realmente pode não chegar?

A verdade é que não podemos fazer nada se chegar a hora, mas ainda bem que nos esquecemos disso. Viver com medo de perder só nos faz viver antes o que será mesmo inevitável...

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