quarta-feira, 12 de junho de 2019

O último dos ascendentes


Desta árvore, quando eu nasci, apenas faltava Benedita. A vó Ditinha, que não conheci, cuja morte mudou a vida da minha mãe e seus irmãos. Era dela o luto que eu conhecia, que minha mãe tinha, de sentir falta do que ela nem sabia como era, de ter uma mãe. Meu vô Antonio, desde que me lembro, chorava e sonhava com a Ditinha, mesmo tendo casado de novo. Para mim a vó Ditinha sempre ocupou o papel de uma quase santa, que foi-se tão cedo, cuja ausência doia tanto nos filhos e marido, mesmo décadas e décadas depois.

Hoje destes ramos e galhinhos todos, só existe eu e meu irmāo. Nosso último ascendente, o vô Antonio, foi embora dias atrás. Foi la encontrar a Ditinha e sua filha, minha mãe. Foi, depois de criar os filhos com dificuldade, mas com sucesso. Foi amado, cuidado. Não teve estudo, mas contava um causo como ninguém. Tinha a risada mais alta e gostosa do mundo. A última vez que o vi, já debilitado, comentou que tinha visto minhas fotos, perguntou da minha vida, mostrava amor de uma maneira que é tão própria na familia. Missāo cumprida nesta vida!


Ocupando meu lugar no mundo

(5 de Junho, 2019)

Hoje antes do trabalho fui por 30 minutos num café da manhã para ex-alunos da escola onde fiz mestrado. Entrei na sala um pouco atrasada, e todo mundo estava já em conversas informais em grupinhos. Vi uma mesa com apenas duas pessoas, e cheguei falando oi, tentando entrar na conversa. Se você já tenha me visto pelo menos uma vez na vida talvez desconfie que eu não gosto muito de situações assim, de ter que conversar com desconhecidos. É uma das atividades mais fora da minha zona de conforto, e eu sempre achei que era por eu ser tímida. Olha, eu sou tímida sim. Mas com o passar da vida, o que eu não sabia com 20, mas já sabia com 30, é que existe tantas formas de ser gente, tantas formas de ser "normal". E muitas vezes crescendo, se descobrindo, a gente se prende numa gaiolinha tentando se encaixar num perfil, seja lá de que, de personalidade, de carreira, de beleza, de ações, de crenças. A gente se liberta quando aceita que não precisa ser nada além de ser a gente mesmo.

E esse ser “a gente mesmo” é fluido, irregular, mutante, aprendiz. E apenas depois de saber quem eu sou, de aceitar erros, qualidades, tipos, que a gente se possibilita aprender, melhorar, sair da zona de conforto com segurança. A gente se liberta quando chama as coisas pelo nome.

E aprendi depois de adulta que gostar de ficar sozinha, não gostar de conversas superficiais, se sentir exausta depois de um dia simples, ser afetada fortemente por pessoas e ambientes, preferir ter ideias pensando dentro da cabeça que falando, ter poucos grandes amigos, amar o silêncio, tudo isso é o que eu sou: introvertida e altamente sensível. É apenas um modo de viver no mundo, que me faz perceber detalhes que algumas pessoas não percebem, que podem tanto me ajudar no trabalho quanto me sobrecarregar de manheira sufocável. Existe um mundo gigante e barulhento dentro da minha cabeça, e todo dia preciso processar esse barulho, sozinha, de maneiras variadas, quase todas em silêncio: caminhando, escrevendo, pensando.

No café, na mesa de duas pessoas, ouvi um pouco sobre a senhora que trabalha há 10 anos na faculdade de direito, e que ama o que faz, embora se sinta as vezes insegura por ser a única pessoa no departamento sem um diploma em direito. Ouvi do senhor, professor na faculdade de educação, que ele ensina cursos sobre diversidade para futuros diretores de escolas. Senti uma certa abertura para ser eu mesma, do jeito que eu sou, uma pessoa que não gosta de conversas superficiais. Contei que uma senhora no meu trabalho esta lá ha 33 anos, e que eu sempre brinco que minha mãe estava grávida de mim quando ela começou a trabalhar lá. Contei que, a propósito, hoje faço 33 anos, e ficar mais velha é tão bom, "é o objetivo ne"? Contei sobre como gosto do meu trabalho porque sinto que estou aprendendo coisas novas o tempo todo, e como isso era sempre o mais importante. Contei como gosto com o passar dos anos de pensar em o que eu não sabia há 5 anos, e das inseguranças que eu tinha há 5 anos, e como gosto de pensar em quais inseguranças e faltas de hoje vão ter passado em 5 anos. Falei tanto em 10 minutos. O professor contou que sua filha tem minha idade, e fez vários paralelos entra ela e eu.

Eu fui embora rápido, até porque comecei a me preocupar de estar sendo “estranha”. Existe este espelho fosco que tento quebrar: como perceber o outro sem ser apenas um reflexo distorcido do que percebi? Achei que me acharam x. Quem disse? E se acharam? A gente se liberta quando diferencia o que é meu, o que é do outro, e o que não pertence nem a um nem ao outro.

Meu dia começou tão bom que depois de ter conversas profundas com estranhos, emanando o que eu sou sem medo do outro, recebi um email da mulher com quem conversei, me agradecendo pela conversa. Ela me libertou. Ela me mostrou que ao escolher ser quem eu sou para o mundo, eu posso ser, sem medo. A gente se liberta quando percebe nossa energia indo para o mundo, e não apenas absorvendo o que vem até a gente.

Todo dia eu quero escolher ser eu, com espaço para aprender, melhorar, mudar, mas nunca com medo de ser. A gente se liberta quando ocupa nosso espaço no mundo. E hoje neste mundo eu sou Aline, 33 anos, imigrante, cidadã do mundo, com olheiras deste os 13, que recuso convites, que me isolo para me recarregar sem vergonha, filha de pais-memórias, que gosta de trabalhar, gosta de aprender coisas aleatórias, não sabe cozinhar, não sabe escolher presentes, se distancia das pessoas, vive muito dentro da própria cabeça, tem vicio em celular e carboidratos. Mas amanhä não sei o que serei, só sei que serei melhor que hoje.

"THE CURIOUS PARADOX IS THAT WHEN I ACCEPT MYSELF JUST AS I AM, THEN I CHANGE." ~~CARL ROGERS