sábado, 1 de junho de 2024

Era uma casa

(de alguns dias atrás)

Eu me vi por gente lá na rua dos Palmares.
Falei, andei, ganhei irmão, ganhei a Susi.
Brinquei muito sozinha, meu irmão ainda bebê.
Uma vez briguei com uma vizinha, levei um soco.
Outra vez andei de bicicleta na rua, e perdi meu ursinho Pooh, que tinha colocado na cestinha.
Um dia meu avô caiu do telhado.
Veio ambulância, um caos.
Quebrou costelas. Ficou bem.
Comecei a usar óculos.
Vivi no maior quintal da minha vida.
Quando criança tudo é tão gigante.

Com sete anos nos mudamos.
Nova rua, com nome de homem.
Perto do bosque.
Lembro na primeira semana em que tudo era tão estranho.
Eu olhei pelo portão e pensei como seria a vida ali.
Foi uma vida toda.

E essa foi a casa em que virei eu.
Esta casa viu todas as minhas versões.
Criança, adolescente, adulta.
Universitária, imigrante.
Filha, orfã.

Foi uma casa em construção.
Nos mudamos tinha só um quarto.
Depois o quarto virou sala de tv, e ganhamos mais um quarto, e outro, e outro.

Meu quarto tinha uma parede de madeira e outra pintada de rosa.
Armário com espelho.
Ouviu muito Legião, Capital, Bon Jovi.
Madrugadas na internet gratuita.
Icq, msn.
Amigas dormindo.
Festas de aniversário.
Quando vi que passei na USP.
Quando vi que passei em Harvard.

Sai dessa casa pra fazer faculdade.
Mas voltava de duas em duas semanas.
Todas as férias.
Depois ainda morei de novo nuns intervalos da vida.

Esta casa tem pouco mais de 30 anos.
Por 14 foi a casa da minha mãe.
Por 20 do meu pai.
E tantos cachorros.
E tantos momentos felizes de conversar na beira da pia, na escada da porta da cozinha.
Uma casa sempre barulhenta.
Latidos.
Rádio da minha mãe.
Tv alta do meu pai.
Almoço sendo feito.
Visitas de família.

Sempre com jardim
Coqueiro
Janelas abertas

Um dia a gente saiu dela de carro com minha mãe e ela nunca mais voltou. 
A gente não sabia. 
Foi o maior trauma da minha vida.
Um outro dia sai de carro com meu pai, e ele nunca mais voltou. 
Eu já sabia. 
E então fiz uma das coisas mais difíceis: esvaziar esta casa. 
Guardar poucas coisas em caixas.
Desfazer de todo o resto. 

Viver sem ter a casa dos pais
É um viver sem porto mesmo.
Navegar sem ter pra onde voltar.
Da uma angústia do caramba.
É um tipo existencial de solidão.

A casa dos meus pais já não existe há 10 anos.
Mas hoje oficialmente a casa física sai das nossas vidas.
E sempre há um tanto de tristeza em deixar as coisas irem embora. 

Obrigada pai e mãe por construírem nossa casa.
Por terem criado um lar e família que só me trazem lembranças boas, de cuidado e atenção.
Obrigada casa por ter cumprido seu papel
De ser a casa dos meus pais.










sábado, 24 de fevereiro de 2024

A morte de um quase desconhecido

O cliente é uma empresa do terceiro setor.
No começo da semana tiveram um problema
Daqueles bem grandes.
Não causado por nós, mas que afetou o trabalho.
Nosso principal contato estava de férias.
Iria voltar depois de uma semana.
Pensei na dor de cabeça que ele teria
Voltar de férias e dar de cara com esse problemão.

O problema estava lá por dois dias
Quando recebemos a notícia.
O contato não voltaria de férias.
Inesperadamente, morreu, durante a viagem.

Duas semanas antes ele fechou o computador
Deixou as coisas meio bagunçadas na mesa
Deixou emails pra responder quando voltasse
Deixou decisões pra tomar quando voltasse
Não voltou.

E essa morte me atravessou de maneira tão profunda
Não por ser meu amigo, ou família.
Não era nem colega de trabalho.
Era uma pessoa que eu via pelo zoom por 30 minutos uma vez por semana.
Que pedia serviços, e a gente respondia.
Que elogiou meu trabalho algumas vezes.
Que sempre se mostrava empolgado por qualquer ideia legal.
Tudo era possibilidade
Apaixonado pela missão da empresa:
Ajudar pessoas que estão recomeçando a vida.

Mas pra além disso tudo.
Agora depois de já ter deixado esse mundo
Fui saber que por trás do cliente
Por trás da pessoa extremamente profissional e simpática 
Havia um homem casado há uma década com um imigrante.
Dois homens que se amavam.
Cheios de amigos
Conhecidos por suas alegrias e sorrisos fáceis.
Que viajaram o mundo juntos.
Que compraram uma casa recentemente.
Que viviam a vida intensamente.

Com que troquei apenas palavras sobre trabalho
Mas poderíamos ter falado de tanto mais.

Me atravessou essa morte de maneira profunda
Por me lembrar de como a morte
Não considera nossos planos e pendências.
E também por me mostrar o tanto que não conheci dessa pessoa que cruzou meu caminho casualmente.
E de como todos nós somos tão cheios de histórias.
E que desperdício é não conhecer profundamente todas as pessoas que cruzam nosso caminho.




quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

A Meia Volta de Halley

Cheguei junto com o Halley, em 1986. Ele passou, deu oi, e seguiu seu caminho, foi lá pras bandas de Netuno, como vem fazendo a centenas de milhares de anos. Já viu de tudo neste mundo. 

Desde sua última visita, foram quase 38 voltas da Terra no Sol. Tanto mudou neste planeta: novas gerações, avanços e retrocessos. Tinha Queen, minha mãe, walkmans, muro de Berlin. Não tinha rede social, Bitcoin, Tiago, Netflix. Mas fora daqui, o universo continuou quase o mesmo. As luas, planetas, constelações, seguindo na mesma cadência com suas danças coreografadas, de órbitas e gravidades, de uma imensidão que não cabe no nosso entendimento. Na linguagem do universo, 38 anos foi apenas um suspiro. Já no meu universo particular, foi de nada a tudo, meu próprio big bang: 38 anos é uma vida todinha! 

Essa semana Halley deu meia volta, começou sua viagem de volta a Terra. Daqui 38 anos, em 2061, ele chega. Nem sou nada neste universo de tamanhos inconcebíveis, mas prometo, senhor Cometinha, que vou marcar na agenda, e se o mundo ainda for mundo, e eu ainda for gente, na data da sua visita, 28 de julho de 2061, vou ser uma senhorinha com a mesma idade que sua órbita, e vou ter vivido a vida que eu escolhi, ainda assim aceitando todas as peripécias do acaso. Ido atrás de todas as possibilidades de felicidades. Sentido todos os sentimentos que passam por mim, sem julgar nenhum. Ficado feliz com cada por do sol, e cada manhã cheia de vida. E chorado sem culpa nenhuma nos dias de chuva. Aproveitado a vida, não com dias cheios de novidades, mas sim com contentamento nos detalhes cheios de beleza.

Prometo mesmo que vou ser feliz sendo quem sou, com uma vida medida por minha própria régua. Não a dos outros. Feliz com o que me faz feliz, uma vida simples, de calmarias diárias, mas com curtas saídas do trilho pra sentir o coração mais forte. Prometo mesmo, senhor Halley, confiar em mim, andar pelo mundo, assim como você, sem pedir desculpas e sem medo de ocupar espaços. Com mais coragem. Leveza e profundidade ao andar pelo mundo e escutar o outro.

No fundo, senhor Halley, pra ser mesmo bem sincera, acho que comigo vai estar tudo bem: tenho tendências fortes a aceitação. Fico mais preocupada mesmo é com todo o resto: 38 anos é tempo o suficiente pra tudo desandar, e você enfim se assustar ao não encontrar mais o que sempre fomos. Destruídos por nós mesmos. 

E não importa. Seja como for. Daqui 38 anos você dará meia volta de novo, seguirá seu rumo de volta pras bandas de Netuno. E todo o resto continuará, as luas, planetas, constelações, seguindo na mesma cadência com suas danças coreografadas, de órbitas e gravidades, de uma imensidão que não cabe no nosso entendimento.


(Meu quintal, árvores no inverno, Orion, e mais bilhões de outras coisas - 13 Dez 2023)





domingo, 10 de dezembro de 2023

Sobre o livro Bittersweet (de Susan Cain)

(Dezembro 2022)

Você ja leu um texto, ou ouviu uma música, e foi tomado por um sentimento enorme de completude, misturado com melancolia, com um pouco de tristeza e alegria ao mesmo tempo? Talvez você não só tenha tido esse sentimento, como também o procura com frequência, seja no tipo de filme que gosta, ou nas músicas que tocam sem parar em seu Spotify. Susan Cain escreve sobre esse sentimento em seu novo livro "Bittersweet - how sorrow and longing make us whole". Não sei como o nome do livro será no Brasil, mas a versão em Portugal ganhou uma terceira palavra em seu subtítulo: saudade ("...como o pesar, a nostalgia e a saudade nos tornam completos"). Me identifiquei muito com a idéia do livro e gostaria de compartilhar aqui.

O sentimento de Bittersweet (em português, "Agridoce") apresenta uma dicotomia bem conhecida: é doce e amargo ao mesmo tempo. Susan Cain resume esse sentimento como a "tendência ao estado de nostalgia, comoção, e pesar; uma consciência gritante do passar do tempo; uma alegria curiosamente dilacerante da beleza do mundo". Algumas pessoas tem uma personalidade "bittersweet", com tendência de sentir um combo de sensações em um momento específico: sentir o coração expandir, um estado de transcendência, de sentir a eternidade, em que o "eu" se diluiu e você se conecta com o todo. Susan Cain de novo (ela é autora do livro mais famoso sobre introversão, "Quiet") nos ajuda a perceber que ser mais melancólico não é um defeito, embora nossa sociedade pregue tanto a necessidade de sempre estar e demonstrar sentimentos positivos. Existe ainda pontos a serem celebrados nessa melancolia, e ela coloca muito foco em um deles, a criatividade.

Cain afirma que esse sentimento está ligado com a procura por "um mundo perfeito", a fonte inicial de toda nostalgia, de retorno para a casa, "a fonte secreta de qualquer foto da lua, obras de arte, e histórias de amor". Ela afirma que não devemos confundir este sentimento com a depressão, que é sim uma doença mental que exige tratamento. Percebo assim: no estado depressivo talvez falte sentido; num sentimento de melancolia como descrito por Cain, existe muito sentido! "Apesar de tudo", qualquer dor, morte, ruptura, crise, esse sentimento de "bittersweet" nos permite ver o mundo como sagrado, misterioso, encantado, a dor nos permite ver como parte da humanidade. Mas nada disso deve ser visto como negação dos momentos difíceis da vida, pelo contrário: se passa pela dor sentindo a dor, em sua profundidade, não evitando, e sim transformado a dor em algo novo, criação, como arte, música, escrita, meditação, reza.

O livro me fez dar palavras para um sentimento que eu sinto e sempre me intrigou: depois da morte da minha mãe, minha primeira grande e dilacerante dor, eu vi mais sentido na vida, consigo ver mais detalhes nas coisas, mais beleza. Vendo fotos, escrevendo sobre meus pais, lendo, ouvindo músicas, as vezes sou tomada por um sentimento que me transborda, sorrio, choro, sinto uma saudade profunda, nunca desespero. Um sentimento de completude, de espanto de como é possível caber em mim um vazio tão preenchido. Morte, vida, amargo, doce.

Esse sentimento pode aparecer não apenas em momentos de dor, mas também alegria. Sabe quando a gente chora de felicidade? Sabe quando a gente está no carro, saindo de férias com a familia, e todo mundo esta rindo, e de repente você sente uma pontada gigante de alegria, e ao mesmo tempo de tristeza, e uma lágrima escorre, porque aquele momento é tão simples, único e belo, e você toma consciência ali, naquele segundo, da passagem do tempo, da finitude de tudo, e sabe que aquele momento vai passar? É esse mesmo sentido - a consciência tão clara da beleza do mundo, e da passagem do tempo, e de como tudo que a gente ama vai um dia embora, mas que mesmo assim, apesar disso, tudo é belo. 


Depois de aprender mais sobre a introversão (graças à mesma autora, Susain Cain!) vejo momentos de solitude como essenciais para meu bem estar. Mas sempre pensei nesses momentos como formas de pensar e entender, processar meu dia a dia, momentos de introspecção. Mas venho percebendo nesses últimos anos que estes momentos podem por vezes me levar a "pensar demais", as vezes ficando presa num ciclo sem parar de pensamentos e ruminação (a tal ansiedade). Tenho concluído que ficar muito focada no que há dentro de si pode ás vezes contribuir com a ansiedade. Ao ler este livro eu percebi que talvez não seja apenas os momentos de solitude que sejam essenciais, mas também os momentos de "bittersweet", melancolia, momentos de transcendência. Não apenas momentos para processar e introspecção, mas também de me sentir completa, vulnerável, de sentir todas as dores do mundo, sem precisar entender, ou controlar, ou nomear, de deixar o coração transbordar, de me conectar com algo maior, com o mundo todo, o universo todo, ouvindo música, escrevendo, lendo, fazendo trilha, subindo uma montanha, assistindo o por do sol, olhando as estrelas, fazendo yoga, brincando com meu cachorro.

Não tanto por coincidência, o mesmo tema apareceu, embora de forma diferente, em um outro livro que li recentemente chamado "Chatter", sobre como a voz que não para de falar dentro da gente pode ser ensurdecedora, e como é necessário as vezes silencia-la. Os dois livros me levaram pra mesma direção: me conectar com o mundo. Buscar esse sentimento de transcendência com mais frequência. Escrever mais, ler mais, me conectar com a natureza e o outro. De me permitir sentir, sem pensar tanto, todos os sentimentos. Ainda há muita beleza nesse mundo doente.


*****

"De repente, a gente vê que perdeu ou está perdendo alguma coisa morna e ingênua que vai ficando no caminho. Que é escuro e frio, mas também bonito porque é iluminado pela beleza do que aconteceu há minutos atrás" (Poema, Cazuza)

"Metade de mim agora é assim, de um lado a poesia, o verbo, a saudade; Do outro, a luta, força e coragem pra chegar no fim. E o fim é belo, incerto, depende de como você vê o novo, o credo,
a fé que você deposita em você e só.
Só enquanto eu respirar vou me lembrar de você" (O Anjo Mais Velho - Fernando Anitelli)

quinta-feira, 2 de novembro de 2023

Memórias

Somos mesmo, em essência, seres fazedores de memórias.
Histórias, lembranças, saudades.
Com enredos, cenários, diálogos.
Um livro lido por nós mesmos pro resto da vida.
Ou por outros, se passarmos a diante.
Costurando a história do universo com todos que vieram antes e chegarão depois de nós.
Um pedacinho tão curto de um contínuo infinito de retalhos.
Palavras, imagens, sensações.
Memórias.

Quase todo o resto é quase nada.

Tudo que te preocupa:

As contas, os sonhos, os conflitos.

Tudo que você busca:

Material, conhecimento, paz.

Tudo que você acha que é vida

E ocupa seu tempo.

É castelo de areia.

Temporal, tempestade, furacão.

Tudo a um segundo do abismo de acabar

E virar história.


Quem era você no último verão? 

Qual foi o pior dia da sua vida?

Qual sua melhor decisão?

O que fica depois que a gente vai?

O que você tem hoje que era sonho ano passado?

Qual foi seu cenário mais bonito?

Qual foi seu elenco favorito?

Qual a trilha sonora da sua adolescência?

O que o último segundo levou de você pra sempre?


Capítulos, versões, atos.

Pedaços deste livro escrito no agora, 

esse segundo de vida que quase não existe. 

Piscou, passou.

Duas linhas acima já é passado, 

escrito em lembranças.

Tempo traquineiro.

A rotina engana.

A gente acorda e vive o dia como se essa fosse a vida toda.

Mas logo a página vira.

Como virou tantas outras vezes.

A viagem tão esperada.

A faculdade.

A adolescência.

A casa onde cresceu.

Ser filha e neta.

O casamento.

Os pais.

O primeiro cachorrinho.

Ou o quinto.

Aquela briga.

Morar em São Paulo, 

Ou Leiden, ou NY.

Almoçar com os amigos todos os dias.

As noites no hospital.

Os meses de insônia.

A sobrinha com 1 ano.

O medo de crescer.

Tudo fingindo ser a vida toda.

Quando são meros capítulos.


Um dia achamos que a vida tá feitinha. 

No outro, tudo se desfaz, o novo chega.

Ontem mesmo foi 2008, e amanhã já é 2036.

Ontem eramos criança com coragem de ir em montanha russa.

Amanhã chegamos aos 40 com medo de escuro. 

Ontem aprendemos "passado mais que perfeito" e equação de segundo grau.

Amanhã nossos amigos da juventude se espalham pelo mundo.

Ontem noites mal dormidas com o filho tão pequeninho que nem sabe falar.

Amanhã os filhos viram pais. 

Ontem a pior dor do mundo.

Amanhã o coração preenchido de luz.


Décadas inteiras dentro de uma estação. 

Minutos que resumem uma vida toda.

Memórias que valem o tanto que marcam a vida.

Romances, dramas, comédias.


Finais.

Enredos.

Lembranças.

Castelos de areia.

Recomeçar-se

Reaprender-se

Reconstruir-se

Reescrever-se.


As montanhas mais belas. 

As conversas mais honestas. 

Os céus mais coloridos. 

Os sentimentos mais profundos. 

Os passos mais leves. 

As pessoas mais amadas.

Os vôos mais longos. 

As festas mais risonhas. 

Os dias comuns mais felizes.

Pessoas que se transformam em memórias.


O desconhecido todo logo ali.

Futuro!

Acaso.

Páginas em branco.

O universo com suas galáxias com bilhões de anos esperando você criar seu próprio mundo.

Livros longos ou nem tanto.

Poesia ou prosa.

Memórias pra gente existir.

Até mesmo depois do fim.



(Minha foto, do meu quintal, Novembro 2023)

domingo, 14 de maio de 2023

Jardim de Memórias

(14 de maio de 2023)

Hoje te pego pela mão
E vamos passear pelo jardim dos seus sonhos 
Flores, passarinhos, rio
Andar por sua infância, tão verde e tão dura
Em meio as montanhas
Mas seca, sem segurança e sem amor
Sem mãe

Depois vamos passear por toda a vida que passamos juntas
Todo o cuidado, preocupação, contas
Apertando tudo pra caber um futuro
Sonhos, conquistas, orgulho 
Você me diz que foi feliz sendo mãe
E meu coração se enche de calmaria

Então paramos e sentamos num banco
Choramos
Porque ali, embaixo do abacateiro, a gente lembra
Daqueles 81 dias de fim anunciado
Quando o inimaginável declarou que não havia mais futuro
"Está na hora de se despedir"
Tão ilógico seria você não existir
Tão impossível seria uma vida sem você
Pra sempre é tanto tempo que não coube no meu entendimento, e nem consegui ficar mais de pé
Mas depois descobri que o amor é tão grande que não cabe no pra sempre

E te pego no colo e coloco dentro de mim
Num lugar que com o tempo ficou mais e mais florido
Desde que você foi embora nada cabe dentro 
Tudo transborda
Flores, passarinhos e rio
O céu, as estrelas, a poesia
Os dias difíceis e todas as minhas dúvidas e medos
Lágrimas, e coração acelerado
Alerta

Te pego pela mão e caminhamos na sua velhice que não existiu
Assim como o colo que preciso já adulta
E que ás vezes chega a mim pelo raio de sol na janela 
Porque o amor é maior que o para sempre
E as tragédias se mostram tão gigantes que parecem engolir uma vida toda
Mas na verdade são tão pequenas quando comparadas com os dias de riso 

Te pego pela mão e chamo a saudade pra sentar com a gente
Sentamos na mesa, no quintal da casa no lago
E tomamos um café com farinha de milho
E te conto tudo que deu certo e tudo o que falta
Te conto sobre essa minha adultez órfã, de uma menina com medo do escuro
E você me abraça e diz
Que o tempo é curto demais pra não ser feliz e corajosa todos os dias 




segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

Você não está perdida

 (Ou feliz 2023!)

Em 2022 eu entrei numa paranóia louca de correr e correr, o mais rápido possível. Dar conta, resolver, mostrar serviço. E soei muitos alarmes de perigo para o meu corpo, que entrou em alerta. 

Corri e corri na trilha, rápido, subindo a montanha, como se um perigo invisivel estivesse correndo atras de mim. Então parei. Não escutei nada, respirei. Olhei para os lados, e me vi perdida. Que árvore são essas? Cadê a trilha? Perdi o caminho. Será?

Minha alma pede todos os dias que eu faça uma coisa de cada vez, que eu pare e preste atenção, pare de clicar tao rapido, pare de correr olhando pro chão. Pare, respire, olhe as estrelas. Exige profundidade. Também pede que eu não me prenda tanto a pensamentos sem sentido, ou exigências de quem não vale, ou expectativas sem troca. Pede leveza. 

Meu corpo pede que eu me mova mais. Alongar, curvar, correr, usar músculos. Respirar. Que eu tome conta dele, que o proteja, porque daqui um tempo tudo isso vai ser ainda mais importante. Que eu cubra distâncias maiores. Que ande em terras novas. Que veja novos céus. Que respire. 

Minha mente pede coragem para cometer erros, para ser julgada, para ser apontada na rua, para ser ridícula, para ser chata. Ser eu, minha autenticidade, nao querendo ser outros ou o que o outro quer. Viver de acordo com minhas medidas. Mais coragem, menos busca por perfeição. Aceitar fazer qualquer coisa mais ou menos, e descansar. Respirar. 

Respirar. 

Parei, respirei. Não, eu não estava perdida. Quando não há um caminho traçado, não tem como se perder. Você não segue uma rota traçada, sempre esteve em sua própria trilha. Você faz o caminho. Pode voltar, retraçar a rota, recomeçar a qualquer momento. Siga, mais vá mais devagar, vire quando quiser, pare para olhar o céu quando quiser. Admire o caminho. É só ele mesmo que existe. 


domingo, 5 de junho de 2022

Trinta e Seis

Acordei para completar 36 voltas no sol. E passei parte da manhã na companhia dele, o sol: raios entre as arvores, calor, luz, cheia de gratidão. Gratidão por ser feliz na maioria dos dias e ver tanto sentido na vida, mesmo que a vida que eu tenha não se pareça nada com o que talvez um dia eu tenha imaginado que seria aos 36 anos. Consigo ver exatamente como minha escolhas e os caminhos da vida me trouxeram até aqui, talvez longe de um ideal, mas exatamente quem eu deveria ser, e onde eu deveria estar. 

Há 14 anos quando minha mãe faleceu, os médicos disseram que meu irmão e eu teríamos que começar a fazer exames de prevenção de câncer de colón 10 anos antes da idade da minha mãe. Ela tinha 46, e 36 parecia tão longe! Mas a forma de contar os anos mudou ali, naquele ano. E eu nem sabia, mas a vida até ali e depois dali seriam duas vidas. Comecei uma nova vida há 14 anos. Me tornei outra pessoa. E talvez por isso eu me sinta tão mais jovem que meus 36 anos.  

Demorou um tempo pra eu perceber que na vida que começou ali eu precisava não só processar o luto daquela perda, mas também um trauma. Hoje eu sei que a morte da minha mãe foi um trauma. Perder a pessoa mais importante da vida é um luto bem singular, porque ele abala a estrutura que segura sua vida toda, você precisa reestruturar tudo, não somente coisas práticas, como quem paga contas, mas o que você sabe sobre vida, amor, cuidado, segurança, esperança, fé, identidade, família. E eu ainda estava no processo quando perdi também meu pai. E ali começou uma vida muito peculiar: ainda nos 20, eu já não tinha pai nem mãe vivos. Uma solidão existencial tão estranha. Isso me faz me sentir diferente da maioria das pessoas que conheço.

Mas eu tenho percebido que essa singularidade tenha sido uma desculpa para viver uma vida pequena, menor. Medos bobos, preocupações sem cabimento, uma vida muito investigada, muito nos detalhes, constante medo de errar. Tudo isso me faz sentir cansada com facilidade, me falta energia as vezes para ver amigos, me conectar com outros, fico muito presa em mim e nos detalhes de tudo. Mas eu sei: a vida é tão mais que meu mundo interior. 

Por um lado eu quero ser quem eu sou, uma pessoa sensível, que presta atenção em tudo, que admira coisas pequenas, que gosta de passar tempo analisando (passei a manha do meu aniversario escrevendo este texto de reflexão!) e tentando achar a melhor maneira possível de fazer qualquer coisa (e até transformei isso em trabalho). Mas eu preciso aprender e me dedicar a olhar com distância, ver o contexto do todo, entender o grande, as conexões. 

Ultimamente ando olhando muito pro céu, aprendendo coisas do universo. Tenho focado em viagens que me conectem com a natureza. Comecei também a fazer yoga. Práticas que me fazem sair de mim, da pessoa pequenininha, e ver o todo, o mundo em que estou inserida. Me ver pequena no universo me ajuda muito a tirar o foco de dentro. 

Aos 36 parece que viro uma esquina. Ainda me sinto tão menina. Mas a verdade é que não sou. Tenho dificuldade as vezes em me perdoar por tudo que não me tornei, mas sei que com o passar dos anos isso é muito inevitável porque cada escolha que a gente faz abre muitos caminhos na frente, e fecha muitos caminhos atrás. Quando eu me mudei de Cruzeiro pra fazer faculdade em São Paulo abri muitos caminhos, que no final me trouxeram onde estou. Mas fechei tantos outros. E se eu tivesse ficado em Cruzeiro? E se eu tivesse decido fazer faculdade em outra cidade? Onde eu estaria? Quem eu seria?

Alguns caminhos se abrem e fecham sem ser escolha também. Quando assisti de perto a morte da minha mãe, tantos se fecharam. O caminho em que ela seria avó, que meus filhos passariam férias com ela no interior. Coisas que parecem ser tão comuns se tornaram impossíveis. E tomei outros caminhos.

Fiz intercâmbio, o que me levou a mudar de país. O que me levou a passar um ano estudando em Harvard. Todos caminhos feitos por escolhas e pela vida. Ganhei tanto, e perdi também.

E o que eu tenho hoje? Viagens incríveis, poucos bons amigos, família que amo na distância. Moro longe e perco muito da convivência com meus tios, primos, e amigos, e agora com os filhos dos meus primos e amigos. Não tenho filhos por escolha, não tenho pais por destino. Caminhos que se fecharam. No passado.

No presente a gente tende a pensar que a vida vai ser sempre assim. A gente se esquece que estamos apenas num pedaço pequeno do caminho, que ainda existem tantas bifurcações a diante, que vida vai nos levar pra um lado ou outro, e daqui um ano ou 10 tudo pode ser tão diferente de agora. Com 36 anos minha mãe tinha 10 anos apenas pra viver e não sabia. O que será no futuro?

Cheguei aqui, nos 36, sou quem eu sou, deixei de ser um tanto de coisas. E tudo bem! Ainda serei um tanto no futuro. Estou cada dia mais em paz com os caminhos que a vida tem me levado e vai me levar. Me lembro todo dia que não há nenhuma necessidade de controle, de ter coisas materiais, de ser melhor que os outros, de subir degraus. Apenas ir em frente, cuidar da saúde e energia, seguir com minhas voltas ao sol, nesta galáxia, neste universo, até o dia que eu também vire energia solta por ai, como minha mãe, meu pai, e todos que vieram antes de mim. 

Ate lá, tem sido incrível aprender e me maravilhar com todas as estrelas, folhas, brisas, novas vidas, luto, fins e recomeços, árvores, desertos, cachorros, gerações, livros, pores do sol, nuvens, montanhas, pelúcias, estradas, luas, passarinhos, profundidade, leveza, raios de sol, estações, aprendizes e mestres. 






segunda-feira, 4 de abril de 2022

A Vida da Minha Mãe

Faz dias que estou presa neste dia: 4 de abril de 2022. Hoje minha mãe faria 60 anos. 

60. Idade que meu pai morreu. Idade tão longe dos 46, em que ela parou de contar. Meu primos que eram bebês quando ela morreu já são adolescentes. O tempo! Seus 46 anos, não tão longe dos meus 35 anos. Quão preenchidos são seus anos? O que poderia ter acontecido se ela estivesse aqui? Sou dessas de pensar muito em números, dos ciclos, do que se repete, de tudo que a gente vive enquanto a Terra segue dando suas voltas no Sol.

Há 60 anos minha mãe nasceu, na roça, sul de Minas Gerais, numa família gigante, dessas que tinham filhos em escadinha. Ela era a terceira, a filha mulher mais velha. A mãe, dona Benedita, teve 7 filhos, e só não teve mais porque morreu cedo, aos 30 e pouquinhos. Dona Benedita tinha uma doença psiquiátrica, acho que os médicos da época não souberam identificar. Nunca entendi ao certo do que morreu. Foi uma tragédia: uma mãe deixou 7 filhos desamparados, o mais novo ainda bebê. Minha mãe tinha uns 7 anos, e ganhou responsabilidades. Subia em tijolo pra cozinhar no fogo de lenha. Nenhum dos irmãos tiveram uma vida fácil. Foram cada um pra um lado, para serem cuidados por tias e avós. 

Minha mãe estudou só até a quarta série. Pré-adolescente, foi morar com uma senhora, que dava casa, mas também dava serviço. Ela limpava, cozinhava. Quanta resiliência! Crianças e jovens crescendo, sem muita proteção, sem lugar seguro, sem direito de sonhar com nada, sem uma casa estável, precisando trabalhar.

Minha mãe morou com essa senhora até os 17 anos, quando começou a namorar meu pai, e a senhora achava muita responsabilidade cuidar de "moça nessa idade de namoro". Minha mãe foi então morar com a avó, que já cuidava de outros irmãos mais novos. Ela nunca se sentiu muito incluída, ou cuidada. Nessa época um tio e o avô foram as pessoas que mais a acolheram. 

Minha mãe só teve uma casa quando se casou, com quase 23 anos. 

Aos 46 anos minha mãe teve um câncer, descoberto tão no final da vida. Uma semana antes de morrer, na última noite que não dormiu no hospital, deitei numa cama de solteiro com ela, e por horas e horas ela me recontou essa história. Sua história. Que tantas vezes antes ela tinha me contado. Que eu, criança com casa, com quintal, com escola, com pai e mãe dedicados, sempre achei tão triste. 

Dessa vez, sentindo a gravidade da doença, e o corpo dando sinais de que a vida estava por um fio, ela recontou a história, com uma conclusão tão triste mas tão ao mesmo tempo feliz: ela concluiu que só começou a ser feliz aos 23 anos, quando se casou com meu pai. Quando enfim teve sua casa, suas coisas, sua família. Perfeito não foi, claro. Mas fomos uma família feliz! 

Naquela semana, depois de ser feliz por muitos anos, minha mãe foi embora. E naquela semana, eu com meus quase 22 anos, comecei a fase da minha vida com mais dias tristes. Venho pensando muito na vida da minha mãe, como ela cresceu, como ela viveu, sua rotina, o que a fazia feliz. Uma vida tão diferente da que levo hoje. Penso muito também nos seus traumas, alguns que eu ainda carrego por ela. Penso na minha obrigação de ser feliz por todos os dias desses 60 anos em que minha mãe não pode ser feliz.  

Hoje agradeço por sua vida, por minha vida, por ter te feito feliz quando pude. Saudades até o fim dos meus dias!



sexta-feira, 27 de março de 2020

Lírios do Campo


Tá sentindo o vento virando, de frio ficando morno, ar parado, silêncio?
Tá vendo os passarinhos tomando rumo para longe, e as árvores se enraizando esperando o temporal?
Tá ouvindo o sino tocando a uma da manhã, acordando todos os que dormem, anunciando que é hora de arrumar as malas, se desfazer dos pesos extras, ajeitar bem apertado só o que vale a pena, e correr?
Tá sentindo o chão tremendo, uma leve mas constante sacudida, desfazendo os caminhos conhecidos, e criando trilhas que não estão nos mapas?
Tá vendo o trincado no relógio da igreja, que fez os minutos virarem segundos, e os ponteiros da hora pularem três dias?
É agora! Corra! Mas para onde? "Basta a cada dia o seu mal"?
Coragem!

O sol continua, mas as nuvens não se movem, a vila está vazia, e as promessas foram quebradas.
Todas as certezas viraram pena, que a gente joga lá do alto, leve, dançante, vai pra lá, e pra cá, quase enganando a gravidade, voa mais quanto maior a resistência.
Não haverá mais o comum, o normal, o conhecido.
Você vai perder o que mais teme: o controle.
Livre! Você, e todos os rumos da vida.
"Vos inquieteis"!
1% vai virar 100 mil, e do leste irá pro oeste, e ninguém mais vai cruzar oceanos.
A vida, que a outra geração nos serviu, acabada, lá no carnaval, varrida pras esquinas, pro lixo, pro bueiro.
A purpurina se espalhou no vento já morno, com as cinzas da quarta-feira.
E você nem percebeu, até que te faltou ar, faltaram camas, faltaram máscaras, faltou gente.

E agora, da tarde para a noite já não se sabe o que será da manhã, se gente ou sombra, se haverá o que comer, o que viver, o que vestir.
Tá vendo? Já cortaram os lírios do campo.
E as ruas são deserto, e as filas multidão: pro ar, pras esmolas, pro pão.
Mas você só pode escolher um 
(Quanto vivo sem pão? Quanto vivo sem ar?)

Tá ouvindo? Estão batendo nas portas, com força, fome, coragem, e espanto.
E vão bater por mais cinco noites, e dois dias.
E vamos entrar.
E vamos achar as casas vazias, com lustre, piano, e piscina.
O pão embolorado acumulando na dispensa, e nos quartos os corpos já sem ar há quinze dias.
Toda gente tem a mesma cor de ossos.

E em procissão vamos subir a montanha para enterrar todos os que não puderam se despedir.
E vamos pedir que nos conte como é viver sem futuro.
Mas quem sabia já se foi antes de nós.
Seremos sem história, sem mapa, sem medo.
E no dia seguinte acordamos sabendo que o mundo acabou, mas que ainda estamos aqui.
E vamos juntar todos os cacos, ruínas, gravetos para criar o mundo que sonhamos embaixo do abacateiro do quintal da nossa infância.

Um mundo em que somos fortes mas nem tanto.
Onde construímos belezas.
Onde pausamos para dores e não dores.
Onde não se compra tempo.
Onde todos são responsáveis por todas as árvores.
Onde ninguém tem mais do que precisa.
Onde não precisamos escolher entre ter pão ou ter ar.
Vamos então respirar, olhar em frente, e seguir.
Vejam os lírios dos campos.
Somos todos história.