sábado, 1 de junho de 2024

Era uma casa

(de alguns dias atrás)

Eu me vi por gente lá na rua dos Palmares.
Falei, andei, ganhei irmão, ganhei a Susi.
Brinquei muito sozinha, meu irmão ainda bebê.
Uma vez briguei com uma vizinha, levei um soco.
Outra vez andei de bicicleta na rua, e perdi meu ursinho Pooh, que tinha colocado na cestinha.
Um dia meu avô caiu do telhado.
Veio ambulância, um caos.
Quebrou costelas. Ficou bem.
Comecei a usar óculos.
Vivi no maior quintal da minha vida.
Quando criança tudo é tão gigante.

Com sete anos nos mudamos.
Nova rua, com nome de homem.
Perto do bosque.
Lembro na primeira semana em que tudo era tão estranho.
Eu olhei pelo portão e pensei como seria a vida ali.
Foi uma vida toda.

E essa foi a casa em que virei eu.
Esta casa viu todas as minhas versões.
Criança, adolescente, adulta.
Universitária, imigrante.
Filha, orfã.

Foi uma casa em construção.
Nos mudamos tinha só um quarto.
Depois o quarto virou sala de tv, e ganhamos mais um quarto, e outro, e outro.

Meu quarto tinha uma parede de madeira e outra pintada de rosa.
Armário com espelho.
Ouviu muito Legião, Capital, Bon Jovi.
Madrugadas na internet gratuita.
Icq, msn.
Amigas dormindo.
Festas de aniversário.
Quando vi que passei na USP.
Quando vi que passei em Harvard.

Sai dessa casa pra fazer faculdade.
Mas voltava de duas em duas semanas.
Todas as férias.
Depois ainda morei de novo nuns intervalos da vida.

Esta casa tem pouco mais de 30 anos.
Por 14 foi a casa da minha mãe.
Por 20 do meu pai.
E tantos cachorros.
E tantos momentos felizes de conversar na beira da pia, na escada da porta da cozinha.
Uma casa sempre barulhenta.
Latidos.
Rádio da minha mãe.
Tv alta do meu pai.
Almoço sendo feito.
Visitas de família.

Sempre com jardim
Coqueiro
Janelas abertas

Um dia a gente saiu dela de carro com minha mãe e ela nunca mais voltou. 
A gente não sabia. 
Foi o maior trauma da minha vida.
Um outro dia sai de carro com meu pai, e ele nunca mais voltou. 
Eu já sabia. 
E então fiz uma das coisas mais difíceis: esvaziar esta casa. 
Guardar poucas coisas em caixas.
Desfazer de todo o resto. 

Viver sem ter a casa dos pais
É um viver sem porto mesmo.
Navegar sem ter pra onde voltar.
Da uma angústia do caramba.
É um tipo existencial de solidão.

A casa dos meus pais já não existe há 10 anos.
Mas hoje oficialmente a casa física sai das nossas vidas.
E sempre há um tanto de tristeza em deixar as coisas irem embora. 

Obrigada pai e mãe por construírem nossa casa.
Por terem criado um lar e família que só me trazem lembranças boas, de cuidado e atenção.
Obrigada casa por ter cumprido seu papel
De ser a casa dos meus pais.










sábado, 24 de fevereiro de 2024

A morte de um quase desconhecido

O cliente é uma empresa do terceiro setor.
No começo da semana tiveram um problema
Daqueles bem grandes.
Não causado por nós, mas que afetou o trabalho.
Nosso principal contato estava de férias.
Iria voltar depois de uma semana.
Pensei na dor de cabeça que ele teria
Voltar de férias e dar de cara com esse problemão.

O problema estava lá por dois dias
Quando recebemos a notícia.
O contato não voltaria de férias.
Inesperadamente, morreu, durante a viagem.

Duas semanas antes ele fechou o computador
Deixou as coisas meio bagunçadas na mesa
Deixou emails pra responder quando voltasse
Deixou decisões pra tomar quando voltasse
Não voltou.

E essa morte me atravessou de maneira tão profunda
Não por ser meu amigo, ou família.
Não era nem colega de trabalho.
Era uma pessoa que eu via pelo zoom por 30 minutos uma vez por semana.
Que pedia serviços, e a gente respondia.
Que elogiou meu trabalho algumas vezes.
Que sempre se mostrava empolgado por qualquer ideia legal.
Tudo era possibilidade
Apaixonado pela missão da empresa:
Ajudar pessoas que estão recomeçando a vida.

Mas pra além disso tudo.
Agora depois de já ter deixado esse mundo
Fui saber que por trás do cliente
Por trás da pessoa extremamente profissional e simpática 
Havia um homem casado há uma década com um imigrante.
Dois homens que se amavam.
Cheios de amigos
Conhecidos por suas alegrias e sorrisos fáceis.
Que viajaram o mundo juntos.
Que compraram uma casa recentemente.
Que viviam a vida intensamente.

Com que troquei apenas palavras sobre trabalho
Mas poderíamos ter falado de tanto mais.

Me atravessou essa morte de maneira profunda
Por me lembrar de como a morte
Não considera nossos planos e pendências.
E também por me mostrar o tanto que não conheci dessa pessoa que cruzou meu caminho casualmente.
E de como todos nós somos tão cheios de histórias.
E que desperdício é não conhecer profundamente todas as pessoas que cruzam nosso caminho.