quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

A Meia Volta de Halley

Cheguei junto com o Halley, em 1986. Ele passou, deu oi, e seguiu seu caminho, foi lá pras bandas de Netuno, como vem fazendo a centenas de milhares de anos. Já viu de tudo neste mundo. 

Desde sua última visita, foram quase 38 voltas da Terra no Sol. Tanto mudou neste planeta: novas gerações, avanços e retrocessos. Tinha Queen, minha mãe, walkmans, muro de Berlin. Não tinha rede social, Bitcoin, Tiago, Netflix. Mas fora daqui, o universo continuou quase o mesmo. As luas, planetas, constelações, seguindo na mesma cadência com suas danças coreografadas, de órbitas e gravidades, de uma imensidão que não cabe no nosso entendimento. Na linguagem do universo, 38 anos foi apenas um suspiro. Já no meu universo particular, foi de nada a tudo, meu próprio big bang: 38 anos é uma vida todinha! 

Essa semana Halley deu meia volta, começou sua viagem de volta a Terra. Daqui 38 anos, em 2061, ele chega. Nem sou nada neste universo de tamanhos inconcebíveis, mas prometo, senhor Cometinha, que vou marcar na agenda, e se o mundo ainda for mundo, e eu ainda for gente, na data da sua visita, 28 de julho de 2061, vou ser uma senhorinha com a mesma idade que sua órbita, e vou ter vivido a vida que eu escolhi, ainda assim aceitando todas as peripécias do acaso. Ido atrás de todas as possibilidades de felicidades. Sentido todos os sentimentos que passam por mim, sem julgar nenhum. Ficado feliz com cada por do sol, e cada manhã cheia de vida. E chorado sem culpa nenhuma nos dias de chuva. Aproveitado a vida, não com dias cheios de novidades, mas sim com contentamento nos detalhes cheios de beleza.

Prometo mesmo que vou ser feliz sendo quem sou, com uma vida medida por minha própria régua. Não a dos outros. Feliz com o que me faz feliz, uma vida simples, de calmarias diárias, mas com curtas saídas do trilho pra sentir o coração mais forte. Prometo mesmo, senhor Halley, confiar em mim, andar pelo mundo, assim como você, sem pedir desculpas e sem medo de ocupar espaços. Com mais coragem. Leveza e profundidade ao andar pelo mundo e escutar o outro.

No fundo, senhor Halley, pra ser mesmo bem sincera, acho que comigo vai estar tudo bem: tenho tendências fortes a aceitação. Fico mais preocupada mesmo é com todo o resto: 38 anos é tempo o suficiente pra tudo desandar, e você enfim se assustar ao não encontrar mais o que sempre fomos. Destruídos por nós mesmos. 

E não importa. Seja como for. Daqui 38 anos você dará meia volta de novo, seguirá seu rumo de volta pras bandas de Netuno. E todo o resto continuará, as luas, planetas, constelações, seguindo na mesma cadência com suas danças coreografadas, de órbitas e gravidades, de uma imensidão que não cabe no nosso entendimento.


(Meu quintal, árvores no inverno, Orion, e mais bilhões de outras coisas - 13 Dez 2023)





domingo, 10 de dezembro de 2023

Sobre o livro Bittersweet (de Susan Cain)

(Dezembro 2022)

Você ja leu um texto, ou ouviu uma música, e foi tomado por um sentimento enorme de completude, misturado com melancolia, com um pouco de tristeza e alegria ao mesmo tempo? Talvez você não só tenha tido esse sentimento, como também o procura com frequência, seja no tipo de filme que gosta, ou nas músicas que tocam sem parar em seu Spotify. Susan Cain escreve sobre esse sentimento em seu novo livro "Bittersweet - how sorrow and longing make us whole". Não sei como o nome do livro será no Brasil, mas a versão em Portugal ganhou uma terceira palavra em seu subtítulo: saudade ("...como o pesar, a nostalgia e a saudade nos tornam completos"). Me identifiquei muito com a idéia do livro e gostaria de compartilhar aqui.

O sentimento de Bittersweet (em português, "Agridoce") apresenta uma dicotomia bem conhecida: é doce e amargo ao mesmo tempo. Susan Cain resume esse sentimento como a "tendência ao estado de nostalgia, comoção, e pesar; uma consciência gritante do passar do tempo; uma alegria curiosamente dilacerante da beleza do mundo". Algumas pessoas tem uma personalidade "bittersweet", com tendência de sentir um combo de sensações em um momento específico: sentir o coração expandir, um estado de transcendência, de sentir a eternidade, em que o "eu" se diluiu e você se conecta com o todo. Susan Cain de novo (ela é autora do livro mais famoso sobre introversão, "Quiet") nos ajuda a perceber que ser mais melancólico não é um defeito, embora nossa sociedade pregue tanto a necessidade de sempre estar e demonstrar sentimentos positivos. Existe ainda pontos a serem celebrados nessa melancolia, e ela coloca muito foco em um deles, a criatividade.

Cain afirma que esse sentimento está ligado com a procura por "um mundo perfeito", a fonte inicial de toda nostalgia, de retorno para a casa, "a fonte secreta de qualquer foto da lua, obras de arte, e histórias de amor". Ela afirma que não devemos confundir este sentimento com a depressão, que é sim uma doença mental que exige tratamento. Percebo assim: no estado depressivo talvez falte sentido; num sentimento de melancolia como descrito por Cain, existe muito sentido! "Apesar de tudo", qualquer dor, morte, ruptura, crise, esse sentimento de "bittersweet" nos permite ver o mundo como sagrado, misterioso, encantado, a dor nos permite ver como parte da humanidade. Mas nada disso deve ser visto como negação dos momentos difíceis da vida, pelo contrário: se passa pela dor sentindo a dor, em sua profundidade, não evitando, e sim transformado a dor em algo novo, criação, como arte, música, escrita, meditação, reza.

O livro me fez dar palavras para um sentimento que eu sinto e sempre me intrigou: depois da morte da minha mãe, minha primeira grande e dilacerante dor, eu vi mais sentido na vida, consigo ver mais detalhes nas coisas, mais beleza. Vendo fotos, escrevendo sobre meus pais, lendo, ouvindo músicas, as vezes sou tomada por um sentimento que me transborda, sorrio, choro, sinto uma saudade profunda, nunca desespero. Um sentimento de completude, de espanto de como é possível caber em mim um vazio tão preenchido. Morte, vida, amargo, doce.

Esse sentimento pode aparecer não apenas em momentos de dor, mas também alegria. Sabe quando a gente chora de felicidade? Sabe quando a gente está no carro, saindo de férias com a familia, e todo mundo esta rindo, e de repente você sente uma pontada gigante de alegria, e ao mesmo tempo de tristeza, e uma lágrima escorre, porque aquele momento é tão simples, único e belo, e você toma consciência ali, naquele segundo, da passagem do tempo, da finitude de tudo, e sabe que aquele momento vai passar? É esse mesmo sentido - a consciência tão clara da beleza do mundo, e da passagem do tempo, e de como tudo que a gente ama vai um dia embora, mas que mesmo assim, apesar disso, tudo é belo. 


Depois de aprender mais sobre a introversão (graças à mesma autora, Susain Cain!) vejo momentos de solitude como essenciais para meu bem estar. Mas sempre pensei nesses momentos como formas de pensar e entender, processar meu dia a dia, momentos de introspecção. Mas venho percebendo nesses últimos anos que estes momentos podem por vezes me levar a "pensar demais", as vezes ficando presa num ciclo sem parar de pensamentos e ruminação (a tal ansiedade). Tenho concluído que ficar muito focada no que há dentro de si pode ás vezes contribuir com a ansiedade. Ao ler este livro eu percebi que talvez não seja apenas os momentos de solitude que sejam essenciais, mas também os momentos de "bittersweet", melancolia, momentos de transcendência. Não apenas momentos para processar e introspecção, mas também de me sentir completa, vulnerável, de sentir todas as dores do mundo, sem precisar entender, ou controlar, ou nomear, de deixar o coração transbordar, de me conectar com algo maior, com o mundo todo, o universo todo, ouvindo música, escrevendo, lendo, fazendo trilha, subindo uma montanha, assistindo o por do sol, olhando as estrelas, fazendo yoga, brincando com meu cachorro.

Não tanto por coincidência, o mesmo tema apareceu, embora de forma diferente, em um outro livro que li recentemente chamado "Chatter", sobre como a voz que não para de falar dentro da gente pode ser ensurdecedora, e como é necessário as vezes silencia-la. Os dois livros me levaram pra mesma direção: me conectar com o mundo. Buscar esse sentimento de transcendência com mais frequência. Escrever mais, ler mais, me conectar com a natureza e o outro. De me permitir sentir, sem pensar tanto, todos os sentimentos. Ainda há muita beleza nesse mundo doente.


*****

"De repente, a gente vê que perdeu ou está perdendo alguma coisa morna e ingênua que vai ficando no caminho. Que é escuro e frio, mas também bonito porque é iluminado pela beleza do que aconteceu há minutos atrás" (Poema, Cazuza)

"Metade de mim agora é assim, de um lado a poesia, o verbo, a saudade; Do outro, a luta, força e coragem pra chegar no fim. E o fim é belo, incerto, depende de como você vê o novo, o credo,
a fé que você deposita em você e só.
Só enquanto eu respirar vou me lembrar de você" (O Anjo Mais Velho - Fernando Anitelli)