domingo, 5 de junho de 2022

Trinta e Seis

Acordei para completar 36 voltas no sol. E passei parte da manhã na companhia dele, o sol: raios entre as arvores, calor, luz, cheia de gratidão. Gratidão por ser feliz na maioria dos dias e ver tanto sentido na vida, mesmo que a vida que eu tenha não se pareça nada com o que talvez um dia eu tenha imaginado que seria aos 36 anos. Consigo ver exatamente como minha escolhas e os caminhos da vida me trouxeram até aqui, talvez longe de um ideal, mas exatamente quem eu deveria ser, e onde eu deveria estar. 

Há 14 anos quando minha mãe faleceu, os médicos disseram que meu irmão e eu teríamos que começar a fazer exames de prevenção de câncer de colón 10 anos antes da idade da minha mãe. Ela tinha 46, e 36 parecia tão longe! Mas a forma de contar os anos mudou ali, naquele ano. E eu nem sabia, mas a vida até ali e depois dali seriam duas vidas. Comecei uma nova vida há 14 anos. Me tornei outra pessoa. E talvez por isso eu me sinta tão mais jovem que meus 36 anos.  

Demorou um tempo pra eu perceber que na vida que começou ali eu precisava não só processar o luto daquela perda, mas também um trauma. Hoje eu sei que a morte da minha mãe foi um trauma. Perder a pessoa mais importante da vida é um luto bem singular, porque ele abala a estrutura que segura sua vida toda, você precisa reestruturar tudo, não somente coisas práticas, como quem paga contas, mas o que você sabe sobre vida, amor, cuidado, segurança, esperança, fé, identidade, família. E eu ainda estava no processo quando perdi também meu pai. E ali começou uma vida muito peculiar: ainda nos 20, eu já não tinha pai nem mãe vivos. Uma solidão existencial tão estranha. Isso me faz me sentir diferente da maioria das pessoas que conheço.

Mas eu tenho percebido que essa singularidade tenha sido uma desculpa para viver uma vida pequena, menor. Medos bobos, preocupações sem cabimento, uma vida muito investigada, muito nos detalhes, constante medo de errar. Tudo isso me faz sentir cansada com facilidade, me falta energia as vezes para ver amigos, me conectar com outros, fico muito presa em mim e nos detalhes de tudo. Mas eu sei: a vida é tão mais que meu mundo interior. 

Por um lado eu quero ser quem eu sou, uma pessoa sensível, que presta atenção em tudo, que admira coisas pequenas, que gosta de passar tempo analisando (passei a manha do meu aniversario escrevendo este texto de reflexão!) e tentando achar a melhor maneira possível de fazer qualquer coisa (e até transformei isso em trabalho). Mas eu preciso aprender e me dedicar a olhar com distância, ver o contexto do todo, entender o grande, as conexões. 

Ultimamente ando olhando muito pro céu, aprendendo coisas do universo. Tenho focado em viagens que me conectem com a natureza. Comecei também a fazer yoga. Práticas que me fazem sair de mim, da pessoa pequenininha, e ver o todo, o mundo em que estou inserida. Me ver pequena no universo me ajuda muito a tirar o foco de dentro. 

Aos 36 parece que viro uma esquina. Ainda me sinto tão menina. Mas a verdade é que não sou. Tenho dificuldade as vezes em me perdoar por tudo que não me tornei, mas sei que com o passar dos anos isso é muito inevitável porque cada escolha que a gente faz abre muitos caminhos na frente, e fecha muitos caminhos atrás. Quando eu me mudei de Cruzeiro pra fazer faculdade em São Paulo abri muitos caminhos, que no final me trouxeram onde estou. Mas fechei tantos outros. E se eu tivesse ficado em Cruzeiro? E se eu tivesse decido fazer faculdade em outra cidade? Onde eu estaria? Quem eu seria?

Alguns caminhos se abrem e fecham sem ser escolha também. Quando assisti de perto a morte da minha mãe, tantos se fecharam. O caminho em que ela seria avó, que meus filhos passariam férias com ela no interior. Coisas que parecem ser tão comuns se tornaram impossíveis. E tomei outros caminhos.

Fiz intercâmbio, o que me levou a mudar de país. O que me levou a passar um ano estudando em Harvard. Todos caminhos feitos por escolhas e pela vida. Ganhei tanto, e perdi também.

E o que eu tenho hoje? Viagens incríveis, poucos bons amigos, família que amo na distância. Moro longe e perco muito da convivência com meus tios, primos, e amigos, e agora com os filhos dos meus primos e amigos. Não tenho filhos por escolha, não tenho pais por destino. Caminhos que se fecharam. No passado.

No presente a gente tende a pensar que a vida vai ser sempre assim. A gente se esquece que estamos apenas num pedaço pequeno do caminho, que ainda existem tantas bifurcações a diante, que vida vai nos levar pra um lado ou outro, e daqui um ano ou 10 tudo pode ser tão diferente de agora. Com 36 anos minha mãe tinha 10 anos apenas pra viver e não sabia. O que será no futuro?

Cheguei aqui, nos 36, sou quem eu sou, deixei de ser um tanto de coisas. E tudo bem! Ainda serei um tanto no futuro. Estou cada dia mais em paz com os caminhos que a vida tem me levado e vai me levar. Me lembro todo dia que não há nenhuma necessidade de controle, de ter coisas materiais, de ser melhor que os outros, de subir degraus. Apenas ir em frente, cuidar da saúde e energia, seguir com minhas voltas ao sol, nesta galáxia, neste universo, até o dia que eu também vire energia solta por ai, como minha mãe, meu pai, e todos que vieram antes de mim. 

Ate lá, tem sido incrível aprender e me maravilhar com todas as estrelas, folhas, brisas, novas vidas, luto, fins e recomeços, árvores, desertos, cachorros, gerações, livros, pores do sol, nuvens, montanhas, pelúcias, estradas, luas, passarinhos, profundidade, leveza, raios de sol, estações, aprendizes e mestres. 






segunda-feira, 4 de abril de 2022

A Vida da Minha Mãe

Faz dias que estou presa neste dia: 4 de abril de 2022. Hoje minha mãe faria 60 anos. 

60. Idade que meu pai morreu. Idade tão longe dos 46, em que ela parou de contar. Meu primos que eram bebês quando ela morreu já são adolescentes. O tempo! Seus 46 anos, não tão longe dos meus 35 anos. Quão preenchidos são seus anos? O que poderia ter acontecido se ela estivesse aqui? Sou dessas de pensar muito em números, dos ciclos, do que se repete, de tudo que a gente vive enquanto a Terra segue dando suas voltas no Sol.

Há 60 anos minha mãe nasceu, na roça, sul de Minas Gerais, numa família gigante, dessas que tinham filhos em escadinha. Ela era a terceira, a filha mulher mais velha. A mãe, dona Benedita, teve 7 filhos, e só não teve mais porque morreu cedo, aos 30 e pouquinhos. Dona Benedita tinha uma doença psiquiátrica, acho que os médicos da época não souberam identificar. Nunca entendi ao certo do que morreu. Foi uma tragédia: uma mãe deixou 7 filhos desamparados, o mais novo ainda bebê. Minha mãe tinha uns 7 anos, e ganhou responsabilidades. Subia em tijolo pra cozinhar no fogo de lenha. Nenhum dos irmãos tiveram uma vida fácil. Foram cada um pra um lado, para serem cuidados por tias e avós. 

Minha mãe estudou só até a quarta série. Pré-adolescente, foi morar com uma senhora, que dava casa, mas também dava serviço. Ela limpava, cozinhava. Quanta resiliência! Crianças e jovens crescendo, sem muita proteção, sem lugar seguro, sem direito de sonhar com nada, sem uma casa estável, precisando trabalhar.

Minha mãe morou com essa senhora até os 17 anos, quando começou a namorar meu pai, e a senhora achava muita responsabilidade cuidar de "moça nessa idade de namoro". Minha mãe foi então morar com a avó, que já cuidava de outros irmãos mais novos. Ela nunca se sentiu muito incluída, ou cuidada. Nessa época um tio e o avô foram as pessoas que mais a acolheram. 

Minha mãe só teve uma casa quando se casou, com quase 23 anos. 

Aos 46 anos minha mãe teve um câncer, descoberto tão no final da vida. Uma semana antes de morrer, na última noite que não dormiu no hospital, deitei numa cama de solteiro com ela, e por horas e horas ela me recontou essa história. Sua história. Que tantas vezes antes ela tinha me contado. Que eu, criança com casa, com quintal, com escola, com pai e mãe dedicados, sempre achei tão triste. 

Dessa vez, sentindo a gravidade da doença, e o corpo dando sinais de que a vida estava por um fio, ela recontou a história, com uma conclusão tão triste mas tão ao mesmo tempo feliz: ela concluiu que só começou a ser feliz aos 23 anos, quando se casou com meu pai. Quando enfim teve sua casa, suas coisas, sua família. Perfeito não foi, claro. Mas fomos uma família feliz! 

Naquela semana, depois de ser feliz por muitos anos, minha mãe foi embora. E naquela semana, eu com meus quase 22 anos, comecei a fase da minha vida com mais dias tristes. Venho pensando muito na vida da minha mãe, como ela cresceu, como ela viveu, sua rotina, o que a fazia feliz. Uma vida tão diferente da que levo hoje. Penso muito também nos seus traumas, alguns que eu ainda carrego por ela. Penso na minha obrigação de ser feliz por todos os dias desses 60 anos em que minha mãe não pode ser feliz.  

Hoje agradeço por sua vida, por minha vida, por ter te feito feliz quando pude. Saudades até o fim dos meus dias!