Tá sentindo o vento virando, de frio ficando morno, ar parado, silêncio?
Tá vendo os passarinhos tomando rumo para longe, e as árvores se enraizando esperando o temporal?
Tá ouvindo o sino tocando a uma da manhã, acordando todos os que dormem, anunciando que é hora de arrumar as malas, se desfazer dos pesos extras, ajeitar bem apertado só o que vale a pena, e correr?
Tá sentindo o chão tremendo, uma leve mas constante sacudida, desfazendo os caminhos conhecidos, e criando trilhas que não estão nos mapas?
Tá vendo o trincado no relógio da igreja, que fez os minutos virarem segundos, e os ponteiros da hora pularem três dias?
É agora! Corra! Mas para onde? "Basta a cada dia o seu mal"?
Coragem!
Coragem!
O sol continua, mas as nuvens não se movem, a vila está vazia, e as promessas foram quebradas.
Todas as certezas viraram pena, que a gente joga lá do alto, leve, dançante, vai pra lá, e pra cá, quase enganando a gravidade, voa mais quanto maior a resistência.
Não haverá mais o comum, o normal, o conhecido.
Você vai perder o que mais teme: o controle.
Livre! Você, e todos os rumos da vida.
"Vos inquieteis"!
"Vos inquieteis"!
1% vai virar 100 mil, e do leste irá pro oeste, e ninguém mais vai cruzar oceanos.
A vida, que a outra geração nos serviu, acabada, lá no carnaval, varrida pras esquinas, pro lixo, pro bueiro.
A purpurina se espalhou no vento já morno, com as cinzas da quarta-feira.
E você nem percebeu, até que te faltou ar, faltaram camas, faltaram máscaras, faltou gente.
E agora, da tarde para a noite já não se sabe o que será da manhã, se gente ou sombra, se haverá o que comer, o que viver, o que vestir.
Tá vendo? Já cortaram os lírios do campo.
E as ruas são deserto, e as filas multidão: pro ar, pras esmolas, pro pão.
Mas você só pode escolher um
(Quanto vivo sem pão? Quanto vivo sem ar?)
Tá ouvindo? Estão batendo nas portas, com força, fome, coragem, e espanto.
E vão bater por mais cinco noites, e dois dias.
E vamos entrar.
E vamos achar as casas vazias, com lustre, piano, e piscina.
O pão embolorado acumulando na dispensa, e nos quartos os corpos já sem ar há quinze dias.
Toda gente tem a mesma cor de ossos.
E em procissão vamos subir a montanha para enterrar todos os que não puderam se despedir.
E vamos pedir que nos conte como é viver sem futuro.
Mas quem sabia já se foi antes de nós.
Seremos sem história, sem mapa, sem medo.
E no dia seguinte acordamos sabendo que o mundo acabou, mas que ainda estamos aqui.
E vamos juntar todos os cacos, ruínas, gravetos para criar o mundo que sonhamos embaixo do abacateiro do quintal da nossa infância.
Um mundo em que somos fortes mas nem tanto.
Onde construímos belezas.
Onde pausamos para dores e não dores.
Onde não se compra tempo.
Onde todos são responsáveis por todas as árvores.
Onde ninguém tem mais do que precisa.
Onde não precisamos escolher entre ter pão ou ter ar.
Vamos então respirar, olhar em frente, e seguir.
Vejam os lírios dos campos.
Vejam os lírios dos campos.
Somos todos história.